Cristina Branco
Teatro Passos Manuel, Porto.
12 Mar 2005
Para a segunda noite de Cristina Branco no Passos Manuel, no Porto, mais uma viagem, como a própria anunciou. Uma viagem por entre as brumas, por entre o nevoeiro, por entre finas camadas de uma esperança que, para os lusitanos, parece caminhar lado a lado com a tal saudade; uma viagem por um disco – o novo Ulisses – que serviu como uma forma de “retomar o rumo”. De vestido longo vermelho e voz segura começou por confessar: “E por vezes as noites duram meses / E por vezes os meses duram oceanos / E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos / E por vezes”. A sua banda, irrepreensível, sempre. Talvez pelo sentimento quase pungente que a guitarra portuguesa e a sua história carregam, Custódio Castelo manifesta-se, não raras vezes, de forma emotiva e expressiva. As suas mãos são quase mágicas, pinta os temas de cores enternecedoras – as cores que emanam da melancolia da guitarra portuguesa. Alexandra Silva, na viola baixo, é discreto mas profundo sabedor. Ricardo Dias no piano e Alexandre Silva na viola completam o quarteto de músicos que acompanham Cristina Branco, que por várias vezes presenteava os membros da sua banda com olhares e gestos de carinho – de resto, tornou-se desde cedo notório que Cristina Branco comunica bastante com os seus músicos durante a actuação.

A “E por vezes” seguiu-se “Sete pedaços de vento”, uma canção que emana luminosidade quer nas guitarras intrincadas e resplandecentes, quer na voz de Cristina Branco ao dizer, por entre tamanha alegria: “Entrego ao vento os meus ais / Onde o desejo se mata / Sete desejos carnais / Que o meu desejo desata”. “Sete pedaços de vento” tem de ser a melhor canção de Ulisses. Pela leveza que transporta, pelos raios de sol que deixa trespassar, pela afirmação do que é ser português de outra forma que não pela melancolia. E juro que “Sete pedaços de vento” equivale a caminhar por entre casas de uma imensa brancura no dia mais solarengo do ano. Sete. Sete pedaços de vento, sete rosas num jardim, sete ares de nostalgia, sete perfumes diversos, sete gritos por gritar, sete silêncios viver, sete luas por brilhar, sete desejos carnais, sete crescentes de lua. Sete. Depois é ver o constante elogio da poesia e de vários poetas, ver Cristina Branco percorrer o seu reportório de canções tão distintas com uma facilidade que impressiona os mais desatentos. É ver uma voz de imensa força abrir-se e transbordar palavras de intensa beleza. É ouvir a urgência da belíssima “Choro (Ai barco que me levasse)” e escutar a guitarra portuguesa desfazer-se em cascatas e criar aquele que é um lugar de imensa saudade e melancolia. “Navio triste” continua a melancolia maioritariamente conduzida pelo piano de Ricardo Dias. Mais uma vez a saudade, a irremediável nostalgia do “inverno, das histórias levadas pelos ventos da memória” e o sentimento de ser português. O barco, o desejo, a proa, a bruma, o olhar. O concerto continua com a justamente intitulada “Cristal” – tema que partilha a luminosidade de “Sete pedaços de vento” – e com “Havemos de ir a Viana”, que termina com a saída de Cristina Branco do palco para fazer brilhar os seus músicos num tema puramente instrumental. E – justiça seja feita – Custódio Castelo brilhou de forma muito especial.

Quando Cristina Branco voltou a subir em palco foi para, com a ajuda do piano de Ricardo Dias, dar vida a “Redondo vocábulo”, um tema de José Afonso. A certo ponto, diz-se: Na rua os meninos brincavam e Laura / Na sala de espera / Inda o ar educa. No booklet de Ulisses, que contém as letras de todas as canções em português, francês e inglês, diz-se e muito bem que, por ser um jogo de palavras, “Redondo vocábulo” permanece intraduzível para que não se perca o seu significado. O que, diga-se, faz todo o sentido. De destacar também a visão do mar e da saudade em tons espanhóis em “Alfonsina y el mar” e a revisão da matéria em “Barco negro”, um tema celebrizado por Amália Rodrigues, onde a palavras tantas se canta, inevitavelmente: “Eu sei, meu amor: Que nem chegaste a partir / Pois tudo, em meu redor / Me diz que estás sempre comigo.”. Quase simbolicamente, Custódio Castelo e Ricardo Dias batiam suave e lentamente com as mãos na guitarra portuguesa e no piano, em jeito de percussão.

Misturam os sons do piano com os da guitarra portuguesa. Entra depois a voz amena de Cristina Branco. Quase sem se notar já se escuta "Porque me olhas assim", de Fausto, e já se pede que a noite não acabe ou que tarde chegue a manhã. A voz de Cristina Branco vai passando a palavra “amor” de canção para canção e parece especialmente emocionada ao cantar “Gaivota”, a canção para um poema de Alexandre O’Neill que o seu avô lhe costumava dizer muitas vezes. Com “Meu amor é marinheiro”, Cristina Branco despede-se mas apenas para voltar minutos depois para, em encore, interpretar “A case of you”, um tema de Joni Mitchell incluído no obrigatório Blue, de 1971. Para finalizar, Cristina Branco confessou: Alexandre O’Neill escreveu que há palavras que nos beijam. Eu não podia estar mais de acordo.. Encerrou o concerto com “Há palavras que nos beijam”, uma canção para o grande poema de Alexandre O’Neill retirada de Murmúrios de 1998. Não é com certeza à toa que os discos de Cristina Branco figuram - lado a lado com os discos de Amália e dos Madredeus – na secção de música portuguesa numa recôndita loja em Innsbruck, na Áustria - e cada vez mais por todo o mundo.
· 12 Mar 2005 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
RELACIONADO / Cristina Branco