Festival Sudoeste 2003
Zambujeira do Mar
7-10 Ago 2003

A música, diz-se, é um pretexto. Uma porta de entrada num mundo de muitas tribos onde o que interessa é a boa disposição e o contacto com pessoas de outras índoles. Às vezes estranhas, às vezes anónimas, às vezes amigas para uma vida. Não interessa quem veste o quê, se usa ou não o casaco da moda ou o cinto da onda electroclash. O sono raramente anda em dia, mas quando pensamos que a madrugada avançada já não nos dá tréguas, conseguimos arranjar sempre forças para mais uns saltos naquela tenda que provavelmente está quase a fechar. Adormece-se depois ao som de batuques e da música que exala de todos os lados para acordar com os mesmos sons com que se adormeceu. Mas um festival é mesmo assim, um mundo aparte, um espaço onde não há lugar para confrontações materialistas. Uma festa, pois bem. Talvez por isso, a Herdade da Casa Branca, durante aqueles quatro dias (que foram preenchidos por mais de cem mil pessoas), fosse o lugar em Portugal com mais substâncias ilegais por metro quadrado.
O que aborrecia era a semelhança com um comício político, dada a quantidade de merchandising que se oferecia pelo recinto e os muitos produtos publicitários que enchiam o chão quando a multidão era obrigada a debandar por exigência da organização. Ou então, as recorrentes “tens mortalhas?”, “desculpa...” e “com licença, posso passar...?”. Ah!, e já agora, os preços quase proibitivos que se praticavam no recinto.
A música é um pretexto, dizíamos, mas continua a ser parte fundamental do festival. Assim, apresentamos um pequeno guia-reportagem do que foram aqueles quatro dias no plano dos concertos. Para quem esteve lá e queira recordar bons e maus momentos, ou para quem queira descobrir o que perdeu.

07/08

Múm Planícies de gelo em tapete de mar Palco
Quando pequenos átomos de música se desprendem do imaginário gelado da Islândia e tornam incandescentes as hordas festivaleiras. Quando a floresta estéril irrompe da poeira e assiste os pequenos partos inorgânicos. Quando o mundo acontece cá fora, para lá do palco, mas os olhos humanos insistem em testemunhar aquilo. E aquilo é um caleidoscópio de sons e instantes pintado de azul-mar e verde-água. Os Múm são ingénuos delatores do arranjo conceptual de um festival de Verão. As suas inscrições plasmáticas de dores infligidas nos instrumentos, os pequenos rascunhos de cores frouxas foram o substrato de um conto infantil nórdico contado ao anoitecer.
A experimentação pop encontra em Tynes e Smárason e nas gémeas Valtýsdóttir um habitat de sonhos e pinceladas. Fragmentos de melodia e clareiras ocupadas por silêncio. Se a música também decorre de paisagens, esta actuação enviesou a raiz electrónica e construiu um glaciar de emoções, uma fonte de palavras e conceitos que jorra sangue e linfa, seiva e crude. A beleza lapidar dos arranjos não esmoreceu perante uma assistência a espaços composta e disforme. As teclas, as cordas, a percussão frágil e os metais, a voz límpida e húmida, de cristais trabalhados. Tudo evocativo das planícies imensas de gelo em confluência com o aroma oceânico.
Quase no final, floresceu um lótus que rompeu o gelo para se mostrar em ‘Green Grass of Tunnel’. Finalmente os Múm não são ninguém. HG

Arnaldo Antunes Tribalista frouxo Palco
Eminente autor de canções a destacar-se do combo artístico chamado Tribalistas, Arnaldo Antunes significou a celebração primeira da encruzilhada de comunidades e linguagens de estilo. Na sua actuação, convocou-se o reggae e o funk, a música tradicional do Brasil e a África Negra, o continente europeu e a lusofonia na voz. Mas a prestação em palco foi amainada pela indecisão entre o decalque romanesco puro e simples e os jogos de sedimentação desgarrada. O encontro pastoral entre a comédia e a tragédia, os óleos de fachada e o rosário dos temas extraídos a “Paradeiro” saquearam a fluidez do espectáculo e empalideceram o tesouro artístico de que se fazia acompanhar.
Talvez ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown o mosaico ficasse mais multicolor e apetecível. A atenção decaiu ao longo do concerto e o escriba que abaixo assina já se passeava pelo recinto enquanto escutava, em fundo, as pouco incisivas tomadas de assalto às canções. A ponto de desejar abandonar os tribalismos e ir apanhar morangos... do nordeste. HG

Terrakota O destino não é de uma cor só
Aos Terrakota cabia a responsabilidade de dar por terminada a primeira noite de concertos no palco Optimus, e o desafio foi passado com distinção. É verdade que num concerto que passou as duas horas nem sempre foi possível manter o público aceso, muito por culpa dos acentuados cortes de ritmo, mas as sonoridades reggae, ska e funk contagiaram e esmagaram um recinto com a maior enchente da noite.
Pegando numa linha criativa que apela ao tribalismo Africano para a partir dele percorrer os mais diversificados e recônditos locais do planeta, os Terrakota utilizam também uma panóplia diversificada de instrumentos que muito contribuíram para o incentivo à dança e aos pulos. Um concerto deste colectivo é sempre um espectáculo festivo, uma viagem mais rítmica que melódica onde o que interessa é a boa onda, os saltos e os charros de boca em boca. Mas além do cansaço provocado pelo rodopio do corpo, o que também fatigava eram as recorrentes e repetitivas mensagens peace and love ao longo de todo o concerto.
Resumindo, um bom espectáculo de ritmos do mundo menos desenvolvido (os mesmos que ouvia quem passeasse dias antes pela Zambujeira do Mar) que pecou pela extensão, o que levou a um esgotamento precoce da paciência e das forças. TG

· 07 Ago 2003 · 08:00 ·

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