Sigur RĂłs
Coliseu do Porto
28 Fev 2003
NĂŁo vou escrever apenas sobre alinhamentos, sobre mĂșsicas, sobre nomes. Escrevo sobre um momento, que parecia por vezes uno, indivisĂ­vel, um acto contĂ­nuo desde o começo plĂșmbeo e nebuloso de “Vaka” atĂ© ao delĂ­rio extasiado, pleno de ruĂ­do, de “Popplagid”. Lembro-me da pressa nos corredores, das projecçÔes trĂ©mulas, e do começo do arrepiar. Lembro-me que foram incomensurĂĄveis as palavras que tentava reconstruir como reportagem, e de como elas se desvaneceram logo a seguir ao concerto ter acabado.

E o concerto de Sigur RĂłs foi uno. Uno no pĂșblico do Coliseu. Quando as trĂȘs mil vozes se calaram, na incerteza de poder quebrar o silĂȘncio que se revelou avassalador quando “ViĂ°rar vel til loftĂĄrsa” pĂĄra, durante cerca de 20 segundos, e eu reparo nas expressĂ”es de hesitação e de ĂȘxtase das pessoas Ă  minha volta, sem saber o que fazer. Quando se recusaram as hipĂłteses isqueirinhos e olĂ©s. Quando se percebia que os ouvidos esticavam na direcção do palco, Ă  procura da voz de falsete de JĂłnsi Birgisson, sĂł descansando no longuĂ­ssimo intervalo entre as mĂșsicas. Porque os aplausos nĂŁo os deixavam recomeçar. Uno no palco. O lento nadar dos arcos na secção de cordas (o quarteto Anima) e os movimentos vagarosos dos Sigur RĂłs pareciam o flutuar inconstante do feto no Ăștero. NĂłs distantes a contemplĂĄ-los. Eles distantes e inacessĂ­veis na sua pureza e candura. E nos pĂ©s descalços de JĂłnsi. NĂłs querĂ­amos apenas tocar ao de leve aquele universo forjado pelo gelo e pela lava, muito para alĂ©m de Reijavique, que consegue ser espiritual sem ser new age, emocional sem ser ridĂ­culo, lento sem morrer.

Depois de um concerto no CCB, hĂĄ um par de anos, nĂŁo haveria grandes dĂșvidas que o pĂșblico que os acolheria agora seria bem mais transversal. O nome dos Sigur passeou frequentemente nas tabelas de vendas, e os vĂ­deos chegaram a caber entre os enlatados pop norte-americanos. Por isso, era grande a expectativa, num concerto que afagava os ouvidos, deixando-os por vezes a sĂłs com o nĂŁo-som, com o silĂȘncio, quanto ao comportamento de um pĂșblico pouco habituado a um “territĂłrio entre a caixa de mĂșsica e o terramoto” (como afirma InĂȘs Nadais), em que a vertigem das batidas ou das histerias colectivas Ă© substituĂ­da pelo progressivo descolar dos pĂ©s do chĂŁo desconfortĂĄvel do Coliseu, em direcção a um qualquer habitat cĂłsmico e simultaneamente interior. E o pĂșblico, embora sem dar trĂ©guas aos pedidos de silĂȘncio intrĂ­nsecos Ă  paleta sonora do conjunto islandĂȘs, e como sempre rendido a priori, conseguiu manifestar o seu ĂȘxtase evitando o quebrar da atmosfera branca que saĂ­a dos sons das guitarras, abstractas no seu feedback arrebatador.
E manifestou-o tambĂ©m nas quatro mĂșsicas novas que os Sigur RĂłs tocaram (“Milanó”, “Göng”, “Salka” e “Smaskifa”), que representam uma tĂ©nue viragem na paleta sonora do grupo, viragem essa no sentido da maior influĂȘncia da percussĂŁo, e de uma passagem do Adagio cadenciado de “()” para algo mais parecido com “Agaetis Byrjun”.

Foi ao ouvir “Staralfur” e “Popplagid” (que constituĂ­ram o Ășnico encore do concerto - de resto, foi relativamente curto, durando duas horas) que a viagem ao centro da Terra se tornou completa, e se fez realmente uma celebração telĂșrica. De regresso Ă  realidade, eu podia jurar que o meu corpo estava mais pesado quando os Sigur RĂłs agradeceram pela Ășltima vez (“Takka” era a palavra que se via projectado no palco) e saĂ­ram de palco. O momento tinha, subitamente, chegado ao fim.


Post Scriptum: Claro que nĂŁo houve sĂł aspectos positivos. Este era um concerto para ver, nĂŁo de pĂ©, mas sentado. Ou deitado. E houve momentos em que se confundia ĂȘxtase com aborrecimento.
· 28 Fev 2003 · 08:00 ·
Nuno Cruz
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