Preste-se uma vĂ©nia Ă Antena 2 pela riqueza de uma programação que parece ter substância mais que suficiente para contrariar o livre abuso das rádios que funcionam a partir de lavagens cerebrais e playlists absolutamente estagnadas. A vĂ©nia Ă© forçosa desde que escutado um programa de autoria incĂłgnita que emitia a abençoada rádio no inĂcio da madrugada de 14 de Outubro do ano passado. Num regresso a casa, apĂłs testemunhado o semear de inferno na ZDB pela mĂŁo dos CAVEIRA e Comets on Fire, era uma hermĂ©tica estranheza que dominava a onda hertziana, com colagens de tapes arrastadas, drones turvos e selecção culta de monĂłlogos obsessivamente dedicados a insectos. O impressionismo Murnau reaproveitado na era dos arquivistas e uma das mais incomodativas surpresas a bordo de um carro nos tempos recentes.
A emissĂŁo interceptada podia atĂ© ser Kielholen, primeirĂssimo lançamento da recĂ©m-estreada label Hinterzimmer, já que essa era esteticamente semelhante Ă selecção que Reto Mäder (tambĂ©m ele assalariado da casa) montou a partir do arquivo mais obscuro acumulado pelo quarteto Herpes Ă– Deluxe entre 1997 e 2005. Ao que se sabe, as peças chegam a ser selecções mais representativas de momentos cujas rotas crescentes ou descendentes podem atĂ© ter sido decepadas (a hipĂłtese de bluff tambĂ©m nĂŁo deve ser descartada). Pesou a mĂŁo de Reto Mäder que conferiu a devida edição e pĂłs-produção, sem que o presente segundo longa-duração represente um trabalho de colaboração.
Para mais, colaborar com os Herpes Ă– Deluxe parece, ao que dá a entender o sombrio Kielholen, implicar uma compatibilidade clĂnica de sintonias dementes com um apetite especial pela vistoria de texturas doentias, bem situadas Ă esquerda de tudo aquilo que possa integrar, Ă luz do dia, um meigo corpo pop. Vampirizam-se mutuamente o borbulhar de graves arrĂtmicos, apontamentos alarmistas desrespeitosos para com o sincronismo tipicamente suĂço, electrĂłnica convulsa e parasitária (pelo modo como reveste os corpos circulares mais prĂłximos), as recorrentes e nauseantes tapes corroĂdas pelas enzimas de um estĂ´mago de jibĂłia. Em “Ruhig Stellen”, a fricção ácida de um feixe sonoro serve para emular aquilo que pode ser o chiar dos pneus que movem um carro condenado a acabar demolido. Os Herpes Ă– Deluxe deliram com a infinidade de hipĂłteses que oferece o ruĂdo quando sujeito a um tratamento incidente na sua elasticidade. Com isso, perfazem o fim do mundo ou a aurora de uma imprevisibilidade que muita falta faz Ă rádio por cá.