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Panda Bear Person Pitch

2007
Paw Tracks / Flur


Entre famílias em que a culinária representa importante tradição e pedra angular da sabedoria que compõe a herança que transita conforme a sucessão de gerações, encontra-se muito mais privilegiadamente posicionado à aquisição do estatuto de lenda o membro capaz de, a partir de um escasso número de ingredientes, criar a substancial ilusão de que sobre a mesa se encontra um banquete real em que o alimento se multiplica milagrosamente - esse que sobra mesmo após satisfeito o quinhão de fome de cada um dos muitos.

Isto porque o condimento, enquanto essência da culinária, não preenche o estômago a ninguém, mas sacia a alma. Independentemente do talento culinário de que possa ser dotado, Panda Bear entende, por perspicaz intuição, que a confecção de um potencial clássico deve manter a devida distância de tendências actuais passageiras sem deixar de soar contemporâneo em qualquer altura. Para tal efeito, mune-se de reduzido equipamento: dois samplers equivalentes a dois fluxos (na maior parte dos casos) contínuos, adereços electrónicos identificáveis nos apontamentos inseridos e a voz projectada muito acima de qualquer plano térreo. Ou seja, exceptuada a colocação cimeira da voz, podia até aqui estar um provável arquétipo de hip hop – com a variante de Panda Bear o cultivar deflectindo, a partir de introspecção pessoal, a tal essência, posteriormente ampliada e exteriorizada, ao longo de Person Pitch, por reluzentes apogeus de optimismo (detectáveis aos refrães), estranhos dialectos orgânicos e toda uma variedade de eficientíssimos jingles que, pelo uso atribuído a blocos inteiros de world music (à falta de melhor termo), se adequariam perfeitamente a campanhas internacionais da UNICEF.

Person Pitch representa, portanto, dicionário actualizado de Esperanto pop, tal como o entende Panda Bear (Noah Lennox, quando menos felpudo). Poder-se-á dizer que consta do terceiro longa-duração representativa parte do vocabulário escolhido pelo próprio para comunicar a boa nova (a recente paternalidade e prazeres familiares adjacentes) aos seus amigos mais estimados espalhados pelo mundo, como pelos corredores de uma moderna Babel. Como avisos prévios de que era de extrema importância a comunicação que tinha por revelar, haviam já sido três os lançamentos de menor porte a antecipar (e a incluir partes de) Person Pitch – um Comfy in Nautica / I’m not, lançado pela UUAR do reincidente Rusty Santos, que produziu com Bear o restante álbum, Bros gentilmente cedido à Fat Cat e o split dividido com os Excepter que incluíra “Carrots”. A ampla inclusão de diversos agentes estende-se, aliás, aos géneros que roçam costas na piscina de Person Pitch: pop de grandiosidade Phil Spector e andrajoso dub, drones etéreos e melodias gasosas, raga indiana e o fascinante oculto de impossível catalogação.

Sob pena de se verem feridas as sensibilidades mais patrióticas, adiante-se que Person Pitch corresponde inegavelmente a obra contemplativa de um cidadão do mundo muito mais do que a documento de um habitante a residir em Lisboa nos últimos três anos. Mais adequado que Panda Bear ou Noah Lennox, seria chamar-lhe Citizen Panda. A seus pés, o mundo de referências mais ou menos evidentes, mais ou menos adulteradas desde os tempos das tapes Soccer Star até ao rachar de cocos ambient dos Jane (projecto mantido a meias com Scott Mou): a predominante liberdade de movimentos que confere alguma ingenuidade propositada e rentabilizada em experimentação, a manipulação do eco como recurso (conforme o geriam os mestres Lee Perry, Joe Meek e Brian Wilson), a urgência em celebrar o jubileu tal como o exterioriza Perry Farrell nos seus hinos mais pessoais póstumos à espiral de auto-destruição Jane’s Addiction. Sim, Brian Wilson – assim, sublinhado – para que se entenda que, ao serem destilados e isolados os bestiais genes que formam o Animal Collective, denota-se que os de Panda Bear são os que mais se encontram próximos do perfeccionista que integrava os Beach Boys (oiça-se a esclarecedora e luminosa “Comfy in Nautica” a Pitch). Por sua vez, Avey Tare zela mais por uma eufórica espontaneidade folk nos discos do Collective.

Apesar de espiritualmente orientado por uma conduta englobante, Person Pitch incide exclusivamente sobre o que tem para oferecer Panda Bear e a personalidade do mesmo, neste caso, mede-se pelos sons predilectos por si seleccionados. Relembre-se que também Pet Sounds servia como barométrico depósito dos sons mais acarinhados por Brian Wilson e restantes Beach Boys – e, com isto, tornam-se três as evidências a aproximar Panda Bear e o autor de Smile. Evidências análogas que não faltam também ao canónico clássico de hip hop The Chronic, afirmação avassaladora de um Dr. Dre prestes a reinar a Costa Oeste, que transbordava em termos de sons afectos e familiares ao entretanto tornado super-produtor: as linhas de sintetizador recuperadas ao espectro do Miami Bass, efusivas vozes soul e uma infinidade de frases venenosas comprovativas do domínio sobre o arqui-inimigo da altura, Eazy-E. Não obstante as realidades distintas que serviram de background a ambos (Lisboa não é exactamente Compton),Person Pitch pode até constituir inspirada aproximação ao molde The Chronic pela inclusão semelhante dos tais sons “mascote”: loops pilhados a um baú étnico intemporal (sem a ironia de uns Stealing Orchestra), adocicados estilhaços de rotina (o choro de um bebé, o ruído do fogo de artifício), sons muito semelhantes aos que emitem brinquedos com mecânicas aditivas.

Acabam por ser imensos os volumes de criatividade a ser compactados num disco só. É sabido que, na prática, a metodologia hip hop é a que mais imediatamente se revela apta à síntese de gloriosos tempos passados (por via prática da samplagem), coincidentemente revitalizados pela vida e fulgor que se sente à voz activamente justaposta às repescagens alinhadas. A fórmula que serviu de base a Person Pitch não dista muito dessa que, actualmente, torna o hip hop a mais excitante ramificação da arqueologia. No que a isso se refere, o elo mais sólido entre a recordação permanente e a tomada de iniciativa surge verbalizada em “Comfy in Nautica” do seguinte modo: Coolness is having courage / Courage to do what's right / Try to remember always / Just to have a good time. Óptimo é perceber que essa tal coragem e noção de gozo pode ser partilhada por todos os que se sintam confortáveis com a temperatura do jacuzzi referencial a que convida Panda Bear. Torna-se perfeitamente óbvio constatar este como o primeiro ponto de encontro incontornável na rota de um 2007 que ainda agora despertou.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
19/03/2007