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The Eternals Heavy International

2007
Aesthetics / Flur


Um dos episódios da segunda temporada da série O Sexo e a Cidade conta com um momento curioso em que as quatro protagonistas celebram os prazeres da vida de solteiro ao som da banda de música latina Ozomatli, que, apesar de apesar de vezes demasiadas serem banais executantes de rock étnico em espanhol, servem perfeitamente a ambientes festivos que o público americano frequenta como se convencido de que militam uma circunstância contra-sistema. Além dos laços mantidos com os Jurassic 5 (Cut Chemist chegou a integrar ambos os colectivos), os Ozomatli partilharam do mesmo palco que os Rage Against the Machine em concertos supostamente contestários, conduzidos “marginalmente†em lugares associados a grandes transacções comerciais. E, conforme é sabido, basta isso ao ianque comum para julgar que a banda-guerrilla renega aos métodos viciosos do dólar. Porém, não basta certamente debitar uns slogans de bolso e inverter a bandeira para que uma banda faça latejar mais intensamente as veias ao punho erguido. Às vezes, muito maior é a eficácia de quem se entrega apaixonada e apoliticamente à liderança de um movimento que ambicione a reclamar as ruas, mais do que as mentalidades.

O tal episódio de O Sexo e a Cidade servia os Ozomatli como uma banda de salsa e isso não convinha sequer à projecção visual de Carrie Bradshaw – interpretada por Sarah Jessica Parker – com a boina à Che Guevara que adorna a cabeça a Madonna na capa de American Life. O cosmopolitismo e luxo próprio da série da HBO interrompia o coito à revolução. Salva-se, porém, uma força da natureza conhecida por Samantha Jones (Kim Cattrall), a infame ninfomaníaca do quarteto feminino – pode ela, mais do que Carrie, simbolizar a esperança de quem acredita que o fim do capitalismo americano pode estar na fadiga sexual imposta aos novos yuppies. Isto porque uma existência aberta e exaustivamente promíscua pode até ser o estado evoluído do revolucionário sofisticado e é exactamente aqui que surge Heavy International, o terceiro disco dos Eternals, que, a partir de uma Chicago imperturbável, derruba castrantes fronteiras (politicas e não só) e forma uma aldeia global ritmicamente transversal ao eixo que une Jamaica ao Congo tal como angulado a partir da cidade ventosa natal.

De tronco nu e reflectindo a energia dos graffitis espalhados pelas grandes cidades do terceiro mundo, Heavy International avança alternadamente entre o pânico de quem tem em chama os seus órgãos vitais (a demente “The Mix is so Bizarreâ€torna isso mais estridente com a samplagem de sopros latinos directos) e a pacificação de quem mergulha esses mesmos em água (logo de seguida, “Astra 3B†ruma a um dub suspenso em anti-gravidade de satélite). Aos vapores resultantes dessa reacção descobrem-se sintetizadores e teclados que se associariam a uns Devo selváticos e conspirações rítmicas cujo alastrar reclama, por si só, estudos sobre fenomenologia. A responsabilidade da combustão, que amplia a dimensão às chamas, recai principalmente sobre os abençoados genes africanos de Damon Locks – o pulmão maior do trio – que vocalmente se encontra num ponto intermédio entre Tunde Adepimbe dos TV on the Radio e Dodo Nkishi, auxiliar temporário dos Mouse on Mars. É o homem perfeito para conduzir os Eternals desde as raízes improv mais Chicago até um estado aplicável a um contexto de favela carioca. Os brasileiros não hesitariam em dizer que Damon Locks é foda.. O que só se certifica a promiscuidade de Heavy International e toda a comparação com o universo de O Sexo e a Cidade.

Pouco depois de escutados uns Gorillaz ciosos a uma “Remove Ya†onde converge toda a essencial polpa Eternals, o anfitrião ameaça cometer um golpe de estado em “Feed the Youth (Stage a Coup)†e tremem, nesse momento, as pernas aos LCD Soundsystem e sentem-se desafiados os !!! – nomes que, através dos respectivos álbuns actuais, reivindicam para si o título de desproporcionais manipuladores de ritmos prontos a queimar calorias ao primeiro semestre de 2007. Acredita-se que os debochados vizinhos Trans Am também esbugalhem os olhos nessa mesma altura. Ou não tivesse Heavy International cometido a afronta de, em apenas metade do tempo que lhe é reservado, ter exibido, na variância e redimensionação da sua matriz dub, imaginação suficiente para alimentar dez discos do género. Não deixa de ser verdade que Heavy International abranda quando menos se deseja, mas toda a revolução deve reservar tempo à ponderação e o duplo momento de transição composto por “Heavy International†e “Crimes†oferece período mais que suficiente a isso, ampliando elasticamente as suas linhas de baixo e uma bateria em elipse (principalmente na primeira).

De certa forma, os Rage Against the Machine atraiçoaram o seu público alvo ao terem saído de cena quando – durante a ditadura Bush – a juventude americana mais dependia da sua inspiração (e assim o foca um hilariante artigo da publicação online The Onion). Os Eternals nunca o deixaram de ser, desde o verão de 1997, e aí estão com um categórico disco fiável para acompanhamento de revoluções que tenham como campos de guerra paralelos os lençóis de padrão tigresse e as ruas de cidades febris. Em raras ocasiões o sexo e a cidade conhecerem conjugações tão convincentes quanto esta.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
28/02/2007