Apesar de invariavelmente servir para descrever o carácter expansivo da música que determina, o termo kraut torna-se limitativo enquanto tentativa de representar exactamente o génio, visão e perseverança de Roedelius. Sim, o “génioâ€, neste caso, justifica-se e não é, de todo, atribuÃdo levianamente a Hans Joachim Roedelius – nome que, a julgar pelo variedade do conteúdo precioso englobado nesta compilação retrospectiva, se encontra uns quantos nÃveis acima do já de si iluminado esclarecimento kraut / kosmische (ambas imensuráveis ramificações a assimilar à Alemanha de finais de 60 e fulgurantes 70). Roedelius cultivou tantas e tamanhas soluções para a electrónica – que, aqui, vai das demonstrações prototÃpicas à s mais complexas – que se torna redutor arquivar o seu nome numa pasta temporalmente restrita como é a do kraut alemão.
Até porque o próprio nome Roedelius encontra latente a si a capacidade de se evadir de circunstâncias que o aprisionem: a partir de uma infância prodigiosa, que o integrara como figurante em filmes vários, o multifacetado mago germânico haveria de desertar da Juventude Hitleriana, acumulado ofÃcios vários e acabado por assumir o estranho modo de vida de massagista “hippie†na França da década de 60. Tudo isto antes de se dedicar com maior afinco a uma carreira musical que o levaria a fazer parte dos Cluster (instituição do kraut em certas ocasiões transformada em Kluster) e a colaborações com gente de tão altÃssimo gabarito como Holger Czukay dos Can ou Conrad Plank (produtor sem o qual o kraut não seria o mesmo). Eventualmente, Roedelius haveria de actuar como tutor de um rapaz aborrecido com as condicionantes limÃtrofes do glam-rock (dos Roxy Music) e que, entretanto, se revelaria rápido e hábil aprendiz: Brian Eno, com quem haveria de partilhar os créditos do sublime momento de Before and After Science, “By This River†(à qual ofereceu teclados, juntamente com Dieter Moebius, também dos Cluster), e compor um canónico After the Heat, que soa tão pós-climático e amenamente ambient como o seu nome indicia.
O sumário biográfico de Roedelius não serve, contudo, para assinalar a inoxidável contemporaneidade e prazer autêntico pelo risco que se escutam a um Works transversal a cinco décadas que permanecem lÃmpidas de rugas e tão cativantes como, suponho, soariam na sua data de origem. De tal forma que o espectro imenso de Roedelius se propaga como um lÃquido de mercúrio que oscila entre as temperaturas mais reduzidas e altas, sem em qualquer altura estalar o vidro que o contém. E, aos ouvidos de quem convive com a música (pop ou avessa a isso) há um quarto de século, Roedelius parece gloriosamente omnipresente em tudo aquilo que lhe floresceu postumamente: nas linhas de teclados dos Depeche Mode, na aurora do catálogo Warp encapsulado numa hipnótica “Freudentanzâ€, numa "Imagine" (aqui remisturada) que pode ser toda a Bristol em estado embriónico. De um modo mais abrangente, até nas músicas que oferecem os menus de espera para pacificar a impaciência ou nas bandas-sonoras de documentários apostados numa mais estranha perspectiva da natureza.
À margem de quase tudo, a bem mais actual “Ameryca Recycled†(2004) destaca-se como obscuridade orquestrada pela face de Roedelius mais interessada em sufocar o triunfalismo das banda-sonoras de westerns até a um ponto recôndito ao qual sobra apenas um sussurro industrial – recanto habitável por Lustmord ou Scorn (alter-ego de Mick Harris).
Embora nunca se espere neutralidade por parte de um empreendimento apostado em promover e celebrar obra, Works 1968-2005 nem sequer descura a revelar fragmentos do que de mais embaraçoso pudesse ter produzido Roedelius em momentos menos inspirados de uma carreira que permanece em aberto (o que impede a compilação de ser tomada como objecto arqueológico ou conclusivo). A bem mais recente “Digital Loveâ€, techno absurdamente maciço com guitarra à velocidade da luz, prova que Shaun Ryder não estava só quando se decidiu pela farra decadente desse OVNI que traz na matrÃcula o tÃtulo Amateur Night at the Big Top.
Simbolicamente, Works 1968-2005 pode até ser a resposta (ou estalo de luva branca) que merecia a label Elipsis Arts por não ter incluÃdo Roedelius entre os vanguardistas que compunham a compilação OHM: The Early Gurus of Electronic Music, que, tal como indica o nome, almejava a englobar compreensivamente (em 3 discos e um booklet) as mais dianteiras notoriedades que um dia desbravaram mundo novo na área da electrónica. Constata-se, a partir dessa exclusão, que a omissão é o primeiro dos sintomas surtidos pela sÃntese e que o nome de Roedelius não será tão imediatamente associável à aurora do género.
Talvez pelo complexidade demarcada de posicionamentos óbvios, pela subtileza fantasmagórica de aplicações disciplinadamente reservadas a uma redoma secundária (escute-se o excerto do projecto Lunz ao vivo) ou por tantas vezes cingi-la ao papel de instrumento clinicamente crucial à produção. Entre os quadrados prateados que abrilhantam a luxuosa caixa aqui sujeita a vistoria, descobre-se o rosto sorridente e jovem de Roedelius. A expressão de alguém a quem o mÃnimo contacto entre entusiasmo e imaginação parece ter sido, desde sempre, suficiente a um despoletar de ideias cujo o arrojo não as impediu de cumprir impunes quase metade de um século e aspirar naturalmente ao cumprimento de outra metade.