Existem locais no nosso imaginário tão inacessÃveis que se tornam, progressivamente, esculpidos não só pelo pouco que deles chegam mas também pelas referências quase subliminares que absorvemos. Do Canadá, apenas a polÃcia montada (principalmente o saudoso cabo Pendergast de “Os Dalton no Canadáâ€). E as vastidões semi geladas. Os alces. O frio. As cidades, quase coladas aos EUA. E as cataratas do Niagara, na fronteira com estes. A National Board of Canada.
Tem sido de lugares cada vez mais a norte que chegam as propostas mais interessantes. Pelo menos, de um ponto de vista muito especÃfico: o ponto de vista da evolução do techno ambiental/IDM/glitch e todas as outras designações para o que o senhor Richard D. James, também conhecido por Aphex Twin, nos legou. De lugares vulgarmente acima de Sheffield, onde se situa a Warp. Designadamente a Escócia (Boards of Canada). Ou a Islândia (Sigur Ròs, Múm). Ou ainda a Noruega (Kings of Convenience).
Por isso se fala do Canadá, origem de Manitoba (aka Dan Snaith). Serão os lugares inóspitos mais propensos para a meditação, para a introspecção? Quem estiver atento aos fenómenos da música electrónica “inteligente†dirá que sim. E em relação aos “próximos passos†da IDM, como referia há pouco, é essencial esta dose de “humanização†(paradoxalmente, deixando aos poucos o organicismo), como que construindo um novo “Manifesto Futurista†feito de sintetizadores distorcidos e batidas desconstruÃdas. Ao mesmo tempo Kraftwerk e Harold Budd, ou, se quisermos, a meio caminho entre Kubrick e Wim Wenders. Entre as divisões matemáticas, distantes do conceito de composição musical clássico, e melodias muito minimais (roçando frequentemente fórmulas demasiado gastas de fugir à problemática da melodia) mas extremamente conseguidas.
“Start Breaking My Heart†consegue simultaneamente uma coerência sonora assinável e uma gama de sons bastante larga, quer na percussão, com tÃmbalos e sons mais exóticos (!), quer na utilização de guitarras ( tal como os seus parentes próximos Telefon Tel Aviv), não significando porém nenhuma aproximação a um tipo de electrónica orgânica.
A referência inevitável aos Boards of Canada está principalmente na cinemática e sublime “Children Play Well Together†(com uso da guitarra numa repetição tensa e nervosa), cheia de sons aparentes perdidos, para subitamente darem espaço a sintetizadores quentes (muito “Selected Ambient Works...â€).
O álbum começa com o excelente “Dundas, Ontario†(que se metamorfoseou no meu imaginario como hipotética banda sonora do Canadá...), ambiental e percorrido por ruÃdos muito subtil que se transformam numa batida sóbria. Excelente. “People Eating Fruit†(o EP “debut†de Manitoba) é surpreendente na sua programação rÃtmica, introduzindo subtilmente alguma complexidade. Os samples vocais são gentis e indiciam uma aproximação à electrónica “infantil†dos Múm. “Mammals V Reptiles†soa muito a Tortoise (ou, de um outro ponto de vista, a “National Anthem em Kid A) com os pratos Jazzy e os sopros dissonantes. “Brandon†e o já referido “Children Play Well Together†são, talvez, os pontos mais altos de “Start Breaking My Heartâ€, com os seus samples analogue densos, belos, que nos remetem para uma melancolia agridoce.
Não se assustem com “Lemon Yoghourtâ€. Contudo, o nome da faixa parece-me uma muito bem conseguida sinestesia. Os sons são ácidos e corroem alguns ouvidos...
“James Second Haircut†é tenso, grave e exótico. All at the same time, principalmente pelas batidas inesperadas e imprevisÃveis.
Até “Happy Ending†repetem-se os samples agridoces, muito azuis e, acima de tudo, quase perdidos por entre programações nos antÃpodas do “grooveâ€, cerebrais e frias como Dundas, Ontario.
Dan Snaith foi para Londres em direcção ao epicentro da música electrónica. É interessante este facto. Porque o que se pode constatar em “Start Breaking My Heart†é precisamente que, apesar da globalização ser inerente a qualquer exercÃcio estético da sociedade ocidental, surge, muito discretamente, um fenómeno de certa música electrónica que quer ser diferente, especial, única. Delicada e transcendente. Feita de batidas cerebrais mas também de emoções e samples de vozes infantis. Como se num qualquer computador perdido no Canadá (e que diz Canadá diz virtualmente qualquer sÃtio do mundo) coubessem os ensinamentos de Antoine De Saint Exupèry.