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Lisa Germano In the Maybe World

2006
Young God Records / Sabotage


Talvez a vocação seja em determinados casos hereditária. Talvez existam genes associados à sensibilidade musical. Talvez essa veia artística se desenvolva de forma mais propícia quando na sua origem estiverem progenitores musicalmente habilidosos. Talvez. Lisa Germano está ciente das congeminações infinitas que esta palavrinha proporciona. Mas, ao apresentar-nos In the Maybe World, sabemos que não vacila nem tem dúvidas quanto à sua vocação – escrever e interpretar canções. Ao todo, já com este último registo contabilizado, a cantora e multi-instrumentista trouxe à luz do dia sete álbuns de estúdio em nome próprio. Ainda parece ter sido ontem que Lisa Germano integrava a formação de suporte de John Mellencamp, dando largas à sua especial predilecção pelo violino, instrumento que, anos mais tarde, a acompanharia na carreira a solo. Desse período, colheu a experiência das digressões e sessões de gravação e o desejo de prosseguir pelos seus próprios meios. Face a este percurso, e apesar de verídico o passado musical dos pais de Lisa, a teoria dos genes pouco ou nada acrescenta à inevitabilidade da sua produção a solo.

Habituada a surgir à retaguarda dos holofotes, a cantora faz coincidir a sua postura com uma sonoridade lo-fi despretensiosa, ao mesmo tempo convincente. A primeira amostra desta aposta que abriu caminho para In the Maybe World intitulava-se On the Way Down From the Moon Palace e aparecia numa altura em que Lisa Germano tinha completos trinta anos de idade. A partir daí, o caminho que nos leva ao álbum de que hoje se fala, é mais recheado de curvas e contracurvas do que rectas com término certo. Preenchem-lhe os dias inquietações várias, nomeadamente desentendimentos com editoras (até chegar à Young God Records, lembre-se que Lisa Germano já trabalhou entre outras com a Capitol ou a 4AD), percalços que lhe trocaram as voltas inesperadamente. Muito embora a norte-americana tenha engendrado o aclamado Geek, The Girl que data de 1994, os contratempos remeteram o seu talento para as colaborações pontuais com músicos afamados. De Neil Finn a David Bowie, de Iggy Pop a Johnny Marr, a opção pelo trabalho ‘por conta de outrem’ ameaça a independência das suas criações. Paralelamente à música, ocupa os seus dias trabalhando numa livraria. Aproveitando ou não o favorecimento de se ver cercada de livros, a discreta compositora desenvolve progressivamente a capacidade de escrever letras confessionais e conjugar os termos indispensáveis ao seu estilo intimista.

Chegados a In the Maybe World deparámo-nos com um conjunto de canções que integra provavelmente alguns dos temas mais fortes da sua carreira. A escolha recai sobre “Too Much Space”, “Golden Cities” ou “Except for the Ghosts”, cuja tónica volta a ser a mensagem sussurrada, a transmissão de desejos, ânsias e sonhos que parecem ser-nos cantados ao ouvido. Acerca do conteúdo deste novo registo, Lisa Germano diz-nos tratar-se de “um disco sobre como honrar a morte e perspectivar a vida”. Ela que, tantas vezes teve de repensar perspectivas para a sua vida artística, abre-nos uma brecha para que possamos encontrar igualmente espaço para reflectir. Em termos objectivos, sabemos que a morte serve de tema a “Except for the Ghosts”, faixa inspirada no desaparecimento de Jeff Buckley, em 1997, e que “Too Much Space” aflora o risco ultrapassado de uma intervenção cirúrgica a que se submeteu o pai da cantora. No fim das contas, este não deixa de ser um disco inequivocamente pessoal, virado para o seu mundo que mais uma vez partilha e engrandece recorrendo a arranjos criativos de uma leveza cativante e que assentam sobretudo no piano e na guitarra. E há depois a voz, delicada mas intensa, apaziguadora e assustadora à vez. Tudo advém de Lisa Germano, desde os atributos vocais ao multi-instrumentismo. In the Maybe World é um verdadeiro catálogo das mais-valias que podemos atribuir a esta persistente compositora.

Quase sem darmos por isso, chegamos ao fim da audição do disco. Constituído por doze faixas, o alinhamento reparte-se por composições de curta duração que duram em média dois minutos e meio. A sua escuta por principiantes fá-los-á descobrir uma cantora que surpreendentemente caminha já a passos largos para uma existência de meio século, uma idade que dificilmente associamos à limpidez e pureza da sua voz. Por tudo isto, Michael Gira – o patrão da Young God Records -, regozijar-se-á certamente de a ter albergado na sua editora, a mesma que assistiu à confirmação do potencial de Devendra Banhart. In the Maybe World é um bálsamo que nos alivia de momentos menos apetecíveis e nos inspira a criar alternativas felizes. Um legado que coloca a sua autora no grupo de personalidades femininas cuja voz e o pleno controlo das suas carreiras, lhes conferiram um estatuto privilegiado. Falamos de Aimee Mann, Fiona Apple, P.J.Harvey, Diamanda Galás, Björk, entre tantas outras que enumerar-se-iam em abono desta postura, sem atendermos particularmente à singularidade das suas propostas. Lisa Germano bem se pode orgulhar da simpatia que reuniu à volta do seu trabalho, suficiente para quebrar o gelo que nos apresenta na capa deste seu novo disco.


Eugénia Azevedo
eugeniaazevedo@bodyspace.net
28/11/2006