A ingenuidade costuma ser a vitima predilecta da torrente frenĂ©tica de beats que, desde há muito, identifica o terrorista que conhecemos por Venetian Snares / Aaron Funk. Aquele que muito provavelmente será o mais incansável dos cirurgiões fieis ao drum n’ bass mais bĂ©lico e matematicamente indomesticável– o explosivo drill n’ bass, se se preferir -, propaga essa fĂ© no gĂ©nero, entretanto desactualizado, com uma farta e calibrada produção a que pode atĂ© faltar alguma inovação, mas que nunca deixa de arrebatar e de caçar desprevenidos os tĂmpanos - tal Ă© a imprevisibilidade das recorrentes armadilhas subversivas que Funk arma entre a vegetação digital de cada um dos seus trabalhos orientados (mesmo que vagamente) por um conceito.
Nesse âmbito, sofreram um valente abanĂŁo os limites do bom-senso com a afronta imposta por Nymphomatriarch, disco de durĂssimo e asfixiante drill n’ bass elaborado a quatro mĂŁos (e sabe-se lá que mais) com Hecate, a namorada de entĂŁo, que agiu coomo cĂşmplice numa cilada a que Sade atribuiria cinco estrelas se ainda vivo: um tumultuoso nĂşcleo nevrálgico de colisões rĂtmicas geradas a partir da samplagem exclusiva de sons captados Ă prática de sexo oral, anal e vaginal pelo inspirado casal aquando de uma digressĂŁo europeia (Paris jamais deixará de inspirar os amantes). Muito mais prático do que Ă partida possa parecer, Nymphomatriarch inspirava a pulsação sanguĂnea atĂ© nĂveis impropriamente clĂnicos, enquanto declarava – da forma mais carnalmente flagrante – a paixĂŁo de Venetian Snares pelo tratamento anatĂłmico da sua matĂ©ria-prima. Entretanto o mago canadiano acumulou uma popularidade que vem a crescer de disco para disco (a menção feita por Jay Leno ao disco “amoroso” ajudou certamente) e suspeita-se que, entre os seus fĂŁs, se descubra uma grossa fatia expectante dessa faceta mais afecta ao que de recĂ´ndito reserva o corpo humano. O mini-álbum Hospitality colmata a fome a todos esses e prova Aaron Funk como versátil mestre capaz de construir um cenário de telenovela tematicamente inspirada pela prática medicinal como contraponto a um obtuso extremo pornográfico. Como se este se tratasse de um disco para exibição em horário nobre, enquanto o outro emitiria em sinal codificado (por programações impossĂveis de se seguir o rasto) a altas horas da madrugada.
Naturalmente, Hospitality revela-se muito mais amigável do que qualquer uma das violentações disparadas por Nymphomatriarch - exibindo preocupações orquestrais logo na primeira “Frictional Nevada”, que, alĂ©m de ostentar um requinte melodioso raro e convincente, oferece o ponto de partida a uma perturbada narrativa que se mantĂ©m de pĂ© durante as seis faixas. A partir daĂ, seria uma questĂŁo de tempo atĂ© o matreiro dramatismo televiso de Hospitality abrir as pernas Ă intervenção do caracterĂstico drill n’ bass que tornou infame Venetian Snares – assim que “Beverly’s Potatoe Orchestra” oferece brecha susceptĂvel Ă infiltração dos tais ritmos metamorfos, passa o mini-álbum a acumular nĂłdulos e o aspecto dolente de quem sofreu a sova habitual de beats (des)alinhados em catadupa. E quem conhece bem o cĂłdigo de silĂŞncio dos slasher movies, sabe que a marretada dĂłi mais quando quebra um continuo som oco. Hospitality ocupa o lugar do estabelecimento clĂnico onde deu entrada um normalizado e sano drum n’bass, que de lá escapou mais doentio e vigoroso. TĂpico cenário Venetian Snares.