Não há formato que melhor demonstre as trafulhices da reciclagem televisiva que o episódio que engloba os mais marcantes momentos a toda uma temporada de determinada série. Usufruindo criminosamente da ingenuidade própria do público da década de 80, em que viveu o seu apogeu, o episódio-compilação empilhava todo o tipo de situações sem aparente preocupação perante a sua previsibilidade - em meia hora, voltavam as irmãs Tanner a semear tragédia e euforia consumista em Full House; bastando também esse tempo ao bicho Alf para ridiculizar a humanidade com a exteriorização do desejo saudosista de regressar ao planeta Melmac. Assim que as coisas se estarreciam no intemporalmente imbecil freeze-frame, sobrava o nome do virtualmente anónimo produtor executivo como indicador de que era seguro voltar a uma vida movida a VHS, cassetes BASF e batatas Matutano. Tudo isso resultaria impune se o episódio “enche-chouriços†mantivesse em permanente rotação um ritmo capaz de evitar o bocejo que normalmente arrisca o mecanismo “baralhar e voltar a dar†perante quem já seja familiar ao que rodopia na berlinda.
Ciente desses riscos, Madga, produtora executiva e interveniente directa na compilação She’s a Dancing Machine, evitou da melhor forma a redundância de que é passÃvel um qualquer aglomerado corriqueiro de faixas: comprimindo em 74 minutos a generosa quantidade de 70 complementos vitamÃnicos extraÃdos a um minimalismo de que se pode orgulhar (e, eventualmente, depender) o techno actual. Complementos esses que surgem magnificamente editados em porções incisivas que não tomam mais que 30 segundos para clarificar a sua real razão de ser – a tal que aponta ao nervo um limitado e virulento arsenal de entrelaçados sonoros dispostos em impiedosa continuidade (o assalto sensorial abranda apenas quando ganham terreno os sub-graves). Sem atropelos ou presenças demasiado denunciadas (os emergentes Marc Houle e Bruno Pronsato serão excepções), serve a soma das partes à celebração do saudável sufoco que normalmente proporcionam os discos selados pela M-nus, casa especializada no formato e abrigo editorial de Richie Hawtin que, além de ter mão assente nas rédeas da label, serviu de mentor e mecenas a Magda.
Temos, portanto, um espécie de compacto das 24 horas de Le Mans onde o techno e subsidiários imediatos desfilam em asfalto que derrete todo o material sobre a sua superfÃcie. Recuperando o mote televisivo, acreditar-se-ia que Magda poderia ter tentado a sua sorte na compactação da intriga em maratona, que assume a série 24 a cada nova temporada, esforçando-se por coincidir cada erupção rÃtmica com cada um dos momentos em que se cobre de suor a testa de Jack Bauer, avolumando o carácter crÃptico da sua subliminar geometria digital quando o personagem interpretado por Kiefer Sutherland julga estar mais perto de resolver o caso – e, isto, sem sequer oferecer ao protagonista intervalo mÃnimo para que este possa trocar de roupa. Sim, porque She’s a Dancing Machine orgulha-se de privar quem escuta do direito a lÃquidos ou a necessidades básicas durante os seus olÃmpicos 74 minutos. Pior, quando falta alguma imaginação a novatos, recorre à mestria magneticamente absorvente das passagens assinadas por Plastikman (ou seja, Richie Hawtin mais embrionário e inflectido). Até porque sublinhar as virtudes do patrão fica sempre bem.
Em termos de garantias exclusivas, pode, de imediato, o tratado She’s a Dancing Machine oferecer à polaca Magda o acesso restrito ao circuito de lofts privados e discotecas de topo por onde circularam, num passado recente, os colossais e calejados Richie Hawtin e Ricardo Villalobos (leia-se a frase com um tom Carlos Cruz de era 1, 2,3 para melhor efeito). À parte disso, optar pela imersão neste inebriante fluxo de techno internamente convulso torna-se prioritário para quem possa achar que falta dinâmica aos capÃtulos da série DJ Kicks ou para os interessados em preparar uma emboscada zonal ao que vai efervescendo com intensidade suficiente para atingir o patamar e preferência dos agentes da M-nus. Quando faz corar o termómetro cerebral, She’s a Dancing Machine ameaça eminentemente a estabilidade cardÃaca. Quem dança por gosto não cansa.