Só uma enorme e inabalável perseverança permitiria a uma banda a capacidade de, mesmo que involuntariamente, estabelecer uma improvável mas crucial ponte entre o pós-punk e o pós-rock. Como que abençoados por um indefinível dom atribuído a quem se aventura por terra de ninguém, os Cocteau Twins surgiram numa primeira metade de 80 em que a reinvenção do punk se havia ramificado em sucedâneos mais elaborados (logo, mais expansivos) e, assim, disponibilizado um imenso rol de soluções a serem cultivadas marginalmente à medida que a década se despistasse em descartável dormência pop. Dos inconfundíveis e recorrentes elementos apropriados ao espólio pós-punk fizeram-se inimitáveis diamantes que o pós-rock não tardaria a recuperar para lapidação própria. Os primeiros, para sempre identificáveis na utilização dos ritmos programados em vez da tradicional bateria e no posicionamento sussurrante do baixo, que negara à sua funcionalidade pós-punk ao abandonar o papel de provocador de reacções físicas impulsivas para mais à vontade complementar o norte rítmico que os Cocteau Twins sempre apontaram para a estratosfera. Essa onde se situavam os diamantes gerados por divino matrimónio químico entre as duas metades do inseparável núcleo Robin Guthrie e Elizabeth Fraser – ele responsável por uma singular abordagem à guitarra, muito mais potencializada nas suas versatilidades técnicas do que nas notas dedilhadas, garantidamente mais ampla no estabelecimento de ambientes – frequentemente erigidos em distorção - do que no cumprimento protocolar de acordes; ela irreversivelmente associada a um estilo vocal verbalmente ininteligível cuja revelação passa mais pelo alcance variável obtido com súbitas ascensões estridentes a planos gasosos e, em alternância, dóceis e mais contidas caminhadas pela relva - passando, nessa condição, a ser publicitariamente aplicável a sensações de prazer transcendental, tal como a ocasiões solenes de prospecção pessoal. Combinados, conferiram raízes genéticas ao corpus estético-musical que Ivo Watts-Russell idealizara para a label que co-fundou Peter Kent, a 4AD cujo nome não se pronuncia sem uma vénia.
A partir daí e focados os alicerces aos Cocteau Twins, é praticamente impossível adjectivar o trio sem repetir habituais suspeitos vocabulares como etéreo, celestial, místico e tudo o mais que frise a espiritualidade extra-corpórea aos escoceses de um Treasure que o é literalmente. Quando assim é, aponte-se apenas a intemporalidade que preservam com a mesma intensidade pérolas autênticas como “Sugar Hiccup” ou “Pearly-Dewdrops’ Drops” que jazem nas fundações do catálogo da 4AD como duas jóias de valor incalculável (ao lado de tantas outras de equivalente preciosidade). Ambas representam peças chave de um convenientemente definitivo e abençoado Lullabies to Violaine pronto a oferecer a oportunidade de conhecer – em forma compacta e integral (se exceptuarmos um par de versões preteridas) – as peças de contacto e diminutos tubos de ensaio ao percurso de uma banda que, sem nunca ter realmente esbarrado em rupturas, foi-se desafiando com sucessivas imposições naturais e subtis alternâncias temáticas. Essas que acabam por surgir ampliadas na economia do formato EP e single – aqui cronologicamente alinhados por quatro discos divididos em dois volumes respeitantes aos períodos de 1982-1990 (período que havia já sido compilado no Box Set de singles lançado em 1991) e de 1993-1996, que completa a ambição que até aqui provocaria insónias ao coleccionador mais obsessivo. Independentemente da relação afectiva mantida com os Cocteau Twins, Lullabies to Violaine é uma generosa empreitada de excelente música para qualquer melómano sedento - inclusive os mais cépticos face aos traiçoeiros anos 80.
Ao ser efectuada uma vistoria panorâmica à abundância qualitativa e quantitativa que os Cocteau Twins mantiveram à margem dos oito álbuns editados, a noção que sobra é a de que será provavelmente um sintoma escocês confiar ao parcial secretismo do formato EP considerável polpa do génio que alimenta uma carreira – bastará citar os casos dos conterrâneos (e mais contemporâneos) Belle & Strap e Arab Strap com sucessores na arte de pontuar uma discografia mais visível com trabalhos de envergadura menor igualmente recomendáveis (se não mesmo superiores). Aquilo a que o guitarrista Robin Guthrie chegou a descrever como um mergulhar do pé numa lagoa de características inéditas constituiria certamente o meio mais directo de saciar a fome aos fãs religiosos sem atrair demasiado alarido mediático. O próprio era suficientemente moderado para admitir que seria praticamente impensável ampliar à dimensão de um álbum completo a prática acústica que orientou o EP Twinlights. Além disso, é por demais natural que uma banda desde sempre perseguida por questões repetitivas – neste caso, verdadeiras inquisidoras da estranheza - procure remeter para esclarecedoras peças de 15 minutos quem ambicione encontrar as respostas que ocultam a voz esfíngica de Liz Fraser e o véu distorcido da guitarra dispersa que Robin Guthrie cunhou e aperfeiçoou mais presentemente nos primeiros quatro anos de actividade – distância temporal entre o seminal Garlands e a reclusão acústica de Victorialand.
Nem sequer é necessária uma grande dose de saudosismo para deduzir que a mais consistente e influente parte da produção dos Cocteau Twins se encontra dispersa entre as balizas que separam os álbuns Garlands (1980) e um Heaven or Las Vegas que revitalizou a presença do trio editorialmente representado 4AD (a que veio a suceder a Capitol). Ou seja, serve o primeiro volume de Lullabies to Violaine para assimilar as considerações que importam realmente reter aos Cocteau Twins de dourada colheita. Importa aproveitar a ocasião para descobrir a completitude que se sente de imediato com a integração do baixista Simon Raymonde – coincidente com o triunfante EP The Spangle Maker - e auto-suficiência desenvolvida a partir daí e exemplarmente capitalizada numa produção mantida desde cedo em nome próprio colectivo. Consta também deste volume um multi-colorido “Aikea-Guinea” (incluído no EP homónimo), cuja graciosa cascata vocal de Fraser, ladeada por plena confiança instrumental, merecia mais do que a penalização sofrida pelo seu título de árdua pronunciação. Há vertigem cerimonial e categórica execução rítmica quase tribal nos EPs siameses Tiny Dynamine e Echoes in a Shallow Bay, que podem perfeitamente adequar-se à ante-câmara referencial de uns Sigur Rós que, anos mais tarde, haveriam de aliar todos estes ensinamentos na colossal faixa que faz desabar os parênteses do terceiro e incompreendido disco ( ). Refira-se esse laço a título de exemplo, já que estabelecer ligações entre os Cocteau Twins e quem inspiraram seria penosamente exaustivo, se bem que demonstrativo da importância histórica do grupo na transição estabelecida entre as duas últimas décadas do século passado.
Apesar de desprovidos do imediato apelo vintage que enriquecia em muito o material que torneou os clássicos Garlands e Treasure, o segundo volume abrange apenas quatro prolíficos anos (1993-1996) maioritariamente dedicados à exploração da elasticidade que podia oferecer a supostamente incorruptível estrutura dos Cocteau Twins, que, mesmo assim, diminuíram o apreciado e intrínseco teor alienígena do seu som por altura de um menos brilhante Four-Calendar Café e singles complementares Evangeline, Snow e Bluebeard, em que eram perfeitamente perceptíveis as palavras cantadas por Liz Fraser em celebração da recente maternidade. Contudo, e na sequência da reivindicação da electrónica inteligente operada pela Warp no Reino Unido, os Cocteau Twins da era de 90 prestavam-se a um muito mais ponderado trabalho nas programações que, além de proporcionar os desígnios rítmicos (menos dramáticos, mais exóticos), passava a conferir o adorno de que necessitava como revestimento a voz de Liz Fraser numa fase em que recuavam a um plano mais discreto a guitarra e baixo até aí equitativamente dianteiros. Pode-se até afirmar que terá sido o esclarecimento proporcionado pelos usos múltiplos conferidos à electrónica a iluminar o caminho dos Cocteau Twins até ao minimalismo cândido que domina o acústico Twinlights ou ao convite dirigido ao produtor emergente Mark Clifford (Seefeel) para remisturar e de alguma forma modernizar faixas anteriores entretanto inseridas no muito curioso EP Otherness. A fase terminal da carreira dos Twins haveria de entrelaçar – sem resultados por demais surpreendentes - o que de mais óbvio e transparente oferecera a chegada de Four-Calendar Café e um recuo mais evidente ao nivelar entre instrumentos e voz que cimentara o interno equilíbrio orgânico da mais ingénua primeira fase. Cumprem como documentos dessa recta final o álbum Milk & Kisses e os representados singles Tishbite e Violaine, que, entre diversos formatos e versões, ofereciam um total de 8 faixas inéditas que muito facilmente poderiam ter sido aproveitadas para um nono álbum que nunca chegou a acontecer (embora conste que metade desse estaria acabado aquando da desintegração do trio).
Quando um suporte desta arrebatadora envergadura se presta à nobre inclusão de 59 faixas recuperadas a um plano paralelo, que tudo fez por dignificar a noção a reter do formato EP, não há como apontar mindinho que seja aos Cocteau Twins pelo parcial falhanço de um par de riscos surgidos em fase tardia. Pensar que bastaria aos autores de Garlands a faceta mais complementar para facilitar a transição entre sonoridades de tão improvável proximidade como o pós-punk e pós-rock e, com isso, cimentar a estética da 4AD, iliba o trio de quaisquer suspeitas. Entender que, além desses, existem ainda discos de corpo inteiro igualmente obrigatórios aproxima os Twins do estatuto lendário que actualmente lhes é merecido.