My death waits like
a bible truth
at the funeral of my youth
weep loud for that
and the passing time
- “My Deathâ€, Scott 1
Não é certamente de agora a manifestamente doentia relação que Scott Walker mantém com a senhora da ceifa afiada. Por ocasião do primeiro tomo da colossal tetralogia homónima, que o afirmou como peculiar génio autónomo, Scott Walker apropriava-se destemidamente de um pedaço recuperado ao cancioneiro de Jacques Brel (a que havia de voltar vezes sem conta) e assumia frontalmente o flirt a manter daà em diante com a parceira do tempo na destruição de tudo. O músico nascido em Ohio – e desde há muito baseado no Reino Unido - despertava para um percurso lÃrico sugestivamente mórbido numa fase em que ainda procurava livrar-se do estigma de Ãdolo pop adquirido num primeiro perÃodo artÃstico enquanto parte de uns Walker Brothers, que apenas partilhavam a consanguinidade do nome e cuja música convencionalmente agradável muito contribuiu para adensar o fosso de contrastes entre um passado colectivo e um corpo de trabalho que isoladamente vem a elaborar o autor de Tilt. Contudo e de um modo tão dolente e arrastado quanto aquele que demorou o corpo Walkeriano a atrofiar num cinzento fúnebre, o último opus The Drift tomou sete aos anos que se esgotam para consolidar a tÃtulo definitivo a capacidade de Scott Walker para a feitura de cabalÃsticos discos maiores que a vida vertiginosamente fixados na morte.
Pudesse embora toda a avalanche de testemunhos de horror – inicialmente surgidos aquando do seu lançamento - ampliar a dimensão de The Drift até a um plano insustentável, a sua superfÃcie em carne(grotescamente)-viva impede-o de manter, em matreirice defensiva, qualquer tipo de bluff que o condene a desilusão. The Drift dói a quem tiver de doer. Para mais, o seu posicionamento temporal torna-o infalÃvel e brutalmente acutilante – pela proximidade mantida com a era sangrenta viciosamente justificada pelo terrorismo. Apesar de incluir sobretudo sons passÃveis de associação dispersa à segunda metade do século passado, na medida em que a influência digital é tão evitada e organicamente emulada quanto possÃvel, The Drift parece talhado para enfrentar o rigor dos actuais tempos de escassa ingenuidade em que o rumor é o novo vÃrus verbal. Parte vacinado para todos os rumores traficados na sua ausência – o que só lhe espicaça a paranóia - ao transfigurar-se por completo a cada contacto unipessoal. Em termos existenciais, é um daqueles espelhos quebrados que perde todo o sentido e impacto se partilhado.
Ainda assim, seria demasiado redutor resignar a eficiência de The Drift à que obtém nessa perspectiva. Enquanto objecto de uma indominável profundidade cabalÃstica (a deriva termina, pois, num buraco negro), merecerá leituras proporcionalmente pessimistas. Em primeiro lugar, qualquer leitura que frise a negro a irreversibilidade como o mais determinante dos factores ao serviço do terror psicológico. Escute-se, por exemplo, o tom de marcha fatÃdica a “Psoriatic†e repare-se em como nunca mudam de sentido as guitarras prestes a desfalecer num marasmo poeirento de instrumentos inqualificáveis (todos esses, hipnotizados pelo dormente Bye the bye the bye que, sofridamente, canta Scott Walker sem o charme crooner de outrora). AÃ, como em tantos outros momentos, o disco lançado pela 4AD revela-se impiedosamente indisposto a negociar com a fragilidade do estômago a curiosidade que conseguiu sequestrar. Acumulam-se úlceras enquanto permanece insolúvel a náusea que se sente a The Drift como à carruagem traseira de um carrossel que não pára durante 70 minutos, que, psicologicamente, parecem uma eternidade.
Num âmbito musical mais concreto, o obituário estilizado que representa de The Drift dispõe dos mais pestilentos recursos possÃveis para executar solenemente o eclipse completo da celestialidade habitualmente associada à 4AD que lançou o disco. Da mesma forma injustificada como vão surgindo em disco, enumera-se agora parte dos agentes de estranheza que marcam presença: improváveis apogeus sinfónicos impróprios para cardÃacos, crus momentos a cappella da voz solitária de Scott Walker, o non-sense incomodativo de murros desferidos num monte de carne e de uma voz deturpada ao ponto de se parecer com a de um Pato Donald satânico, loops atordoantes, texturas rÃspidas que a cada instante ameaçam um caso clÃnico, um abalo violentÃssimo assim que se escuta o zurrar infernal aos burros em “Jolson and Jonesâ€. Algures, num qualquer recanto que o sol não alcança, Scott Walker admira a colecção de vitimas que aprisionou com as suas armadilhas auditivas espalhadas por The Drift.
É arriscado e provavelmente absurdo estabelecer a hostilidade de The Drift como a mais dizimante e sólida tentativa de superar o que de mais pavoroso tenha produzido um global passado artÃstico recente, mas a verdade é que, por comparação, parecem agora mais obsoletos e diminutos quaisquer discos dos Nine Inch Nails ou de Ministry (entidades da música industrial célebres pelos danos mentais provocados). Parecem também ameaçados os estatutos sagrados dos terrÃveis Swans e da invariavelmente arrepiante Diamanda Galás. Até o infame cagaço que provoca a entrada abrupta das guitarras em “Like Herod†dos Mogwai, surge agora assombrado pela redundância. Perante tão drástica mudança verificada no pódio reservado aos pesadelos musicais, é-me impossÃvel não ser confessional no remate. Isto porque, após a mão cheia de visualizações dedicadas a Massacre no Texas e Saló de Pasolini (ambos experiências extremas), lembro-me de ter sido capaz de remediar o efeito provocado com alguma abstracção bem humorada. Creio já ter escutado The Drift cinco vezes durante o dia de hoje e a verdade é que não sinto ter desenvolvido a menor insensibilidade em relação à sua maldita brutalidade. Consensualmente, o ano de 2006 borra-se perante tão maquiavélico disco.