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Volcano! Beautiful Seizure

2005
Leaf / Flur


Por mais debatida que tenha vindo a ser a alienação imposta pela irmandade afro Cedric Bixler e Omar Rodriguez, na transição efectuada dos At the Drive-In para os Mars Volta, os queixosos do rumo prog que tomou a segunda banda não se devem sentir ultrajados ou hostilizados pelo cariz drástico da mudança, quando houve um período de transição a dois tempos sob a forma do EP Tremulant e do primeiro De-Loused in the Comatorium, ambos assimiláveis por um estômago adaptado a dieta Drive-In e incomparavelmente mais simples que os colossos (independentemente de julgamento qualitativo) Frances, the Mute ou o último Amputechture. A ponte entre esses dois momentos encontra-se invisivelmente projectada in limbo, perdida no tal estado de sonambulismo que, por impulso de forças psíquicas, levou à centrifugadora doses desproporcionais de elementos étnicos latinos e laivos de ambiciosa barba grisalha que, na década de 70, serviu para mistificar os infames álbuns quádruplos. Repare-se como em De-Loused os Mars Volta nunca arriscam um clímax sem antes somarem em crescendo toda uma combinação de alíneas abstractamente climáticas (sons naturalmente exóticos e tudo mais), rasgos psicadélicos e tudo mais que sirva de preliminar a um refrão mais talhado para se fixar territorialmente na mente. Interessa ao caso saber com que malhas de contacto se cozeram os Mars Volta apenas porque os Volcano! aparentam cumprir quarentena lunática numa espécie de limbo que não exibe características virtuosas para ser adjectivado de progressivo, nem tão pouco demonstra uma facilidade contagiosa que o limite a ser rock destilado por power-trio (os elementos da banda são três e oriundos de Chicago). Não é carne, nem é peixe, mas é altamente consistente. E capaz de provocar sarna ao curioso em cada um, de tão intrigante que chega a ser.

Assim se forma um enigma. De forma desenfreadamente imprevisível – espiritualmente conduzida por uma orientação free - e ao jeito de ameaça sem rosto, Beautiful Seizure é um disco de transição que desconhece o ponto de partida e nem tão pouco sabe ao certo onde quer chegar – deixando-se descoordenar numa deriva destituída de referências cardeais que o torna ainda mais aflitivo na forma como expurga essa desorientação em guitarras lamentosas, solilóquios impulsivos majestosamente equiparáveis aos que nos chegam a cada disco oriundo do novo Canadá e a grandiosidade – garantida por ocasional intervenção de instrumentos mais sinfónicos – de quem já se decidiu por afundar com o barco. E tudo isto em regime camaleónico, logo quase incatalogável, e projectado à superfície como que por entre a brecha de um diamante de energia alcalina. Indisciplinadamente assinalado por casamentos completamente disfuncionais entre valsas de salão e momentos abrasivos como “Red and White Bells”, a que se descobre mais presentemente a fricção típica de Chicago. De modo igualmente disfuncional, os aterradores metais Gamelan de "Larchmontt's Arrival" tornam ainda mais bizarro o aspecto de micro-ópera estampado no tapete que rola para receber um Nicolai Dunger em modo Pasolini na antecipação metereológica de "La Lluvia", cujo núcleo nervoso - prenhe de ruído branco - é coisa para provocar paixões entre neuróticos de sensibilidades tempestivas.

Apesar do vulcão ser o símbolo máximo da contenção tântrica que personifica no reino da pornografia o lendário woodman Ron Jeremy, o Vulcano! exclamado nem por isso se digna a reter argumentos incendiários e a prova disso está no madrugador uso piromaníaco que aplica a um slogan como “Easy Does It”, que se adequaria idealmente a um crooning de sedutoras falinhas mansas, mas que aqui surge repetido em demência até se encontrarem totalmente gastas as cordas vocais de Aaron With, uma espécie de Thom Yorke convertido a um estado de lucidez visionária própria de quem conhece o sofrimento de todas as tragédias ocorridas e daquelas por acontecer. Nesse flagrante caso, tal como em outros momentos em que parece condenado ao aprisionamento num hospício Albiniano, Beautiful Seizure parece (ou finge-se) incapaz de discernir as aplicações para os seus recursos, mas esses acabam por conseguir a infiltração – variavelmente dolorosa e morosa – no favo temático do disco que lhes pertence. Poeticamente belo é reparar em como sustém uma estrutura convencional às costas de touro em rodeo, cujo comportamento feroz é espicaçado por todos os detritos sem encaixe possível. Melhor. À medida que ganha profundidade como um estereograma, Beautiful Seizure vai convencendo de que será mesmo um dos mais cativantes discos a emergir de Chicago no último par de anos.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
11/10/2006