Comecemos pela questĂŁo que quase sempre remata e coloca em cheque a integridade de um disco composto exclusivamente por versões de mĂşsicas assinadas por outrĂ©m: valerá a pena tentar assimilar afectivamente as apropriações de temas que na, sua forma original, já ocupam um inamovĂvel lugar cativo? NĂŁo haverá quem arrisque um qualquer absolutismo que arrume a questĂŁo, mas pode - em termos práticos - uma sĂ©rie de factores recentes estabelecer motivos suficientes para que se ofereça o “benefĂcio da dĂşvida” Ă s movimentações dos “amigos do alheio”. Recorde-se, por exemplo a legitimidade e discreto fulgor criativo presente na memorável versĂŁo que fez Cat Power de “Satisfaction” dos Rolling Stones que surgia irreconhecĂvel no Covers Record - desprovida daquele riff Pavloviano e umbilicalmente ligada ao original atravĂ©s de uns escassos versos. Mark Kozelek soube manear o espĂłlio dos AC/DC e torná-lo praticamente irreconhecĂvel aos ouvidos dos fĂŁs mais obsessivos da banda. Soube tambĂ©m atirar-se aos Modest Mouse a partir de perspectivas menos Ăłbvias (evitando as mais emblemáticas canções da banda), provavelmente ciente de que algumas profecias e solilĂłquios existenciais nĂŁo passam sem a nasalidade de Isaac Brock. Os prĂłprios Yeah Yeah Yeahs há muito que arriscam trincar fruta vizinha e cuspir Ă sua maneira esquelĂ©tica faixas afamadas pelos Liars (“Mr. your on fire Mr.”) ou Sonic Youth (“Diamond Sea”).
Apesar da imagem EdĂ©nica associada a Karen O. (Eva invertida) no parágrafo anterior, nĂŁo constitui pecado digno de ser penalizado o mĂ©todo YYY’s distribuĂdo por faixas sortidas e por formatos igualmente avulsos. A pertinĂŞncia protege (e o interesse persegue) quem procura adulterar ou distorcer atĂ© ao irreconhecĂvel o material pilhado e iliba de culpas quem opta por apresentá-lo como curiosidade ou novelty condenado a prazo. NĂŁo terá sido essa a opção de Susanna Wallumrød e da Magical Orchestra (Morten Qvenild, homem de imensos ofĂcios) que tem ao serviço da sua tĂ©nue e encantadora voz. Com uma impenetrável solenidade religiosa, firmada pela versĂŁo de “Hallelujah” de Leonard Cohen e apenas violada pelas versões de AC / DC e Kiss, Susanna afoita-se destemidamente a um álbum composto apenas por versões e nĂŁo pestaneja sequer perante o desafio que Ă© domar Ă sua serenidade caracterĂstica monumentos sagrados como “Love will tear us apart” dos Joy Division ou “Enjoy the Silence” dos Depeche Mode. A tarefa apresentaria-se tĂŁo árdua como empilhar um baralho de cartas atĂ© atingir as proporções de uma Torre de Babel ou armar a tal montanha de melodia utilizando apenas grĂŁos de areia. DaĂ o tĂtulo – directamente relacionado com a corpulĂŞncia que tem de fingir um qualquer elemento minimalista para que se repare nele.
A aplicação dessa arte a um cenário de apropriação nĂŁo será, aliás, faceta estranha ao contingente norueguĂŞs (a que se juntou tambĂ©m a produção garantida por Helge Sten a.k.a.Deathprod) que havia já pontuado o inĂcio do debute List of Lights and Buoys com achegas a “Who Am I?” do compositor Leonard Bernstein e “Jolene” da voluptuosa figura country Dolly Parton. Sobre esses primeiros passos, Susanna e a Magical Orchestra levam a significativa vantagem que garante, por esta segunda ocasiĂŁo, uma apuradĂssima elegância dos arranjos (a auto-harpa que ilumina “Enjoy the Silence” Ă© pĂł-de-anjo prontinho a fazer levitar o peso dos corpos atentos), a produção quase passiva de Deathprod e a profundidade emocional que atinge a soberba voz de Susanna, que nĂŁo aparenta o menor receio em usufruir em pleno da sua fragilidade no limiar das capacidades que tem a sua orgânica de cristal (o estalar sĂł ameaça mesmo uma “Hallelujah” que, apesar de inofensiva, constitui mote dispensável).
Ao abrigo de tĂŁo inspirado enquadramento de talento, geometrizado em trĂŞs vĂ©rtices nĂłrdicos, Melody Mountain pode orgulhar-se da irrepreensibilidade tĂ©cnica dos teclados mágicos – lá está – que tantas vezes explora em invisibilidade o desenvencilhado Morten Qvenild (que tem as mĂŁos calejadas do trabalho nos Jaga Jazzist e nos bem mais caĂłticos Shining). Pode pavonear-se por isso e pela capacidades curativas que pode oferecer a alguĂ©m que tenha acabado de cortar a meta a maratona de stress. Pode atĂ© trazer ao peito um medalhĂŁo de subtil humor como Ă© a viciante e arrojada versĂŁo de “It’s a long way to the top” dos AC/DC (que será heresia para muita gente). SĂł fracassa mesmo no cumprimento da tarefa que tinha estipulada desde o inĂcio: impele muito mais ao regresso aos clássicos invocados do que a escutas que o persigam apĂłs as primeiras cinco. Vale a pena escalar esta montanha referencial, ainda assim.