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Xiu Xiu The Air Force

2006
5 Rue Christine


Decorre numa sala de estar uma esgrima de argumentos entre um pároco local, em representação da Igreja tradicional, e um matemático, que responde pela razão da ciência. Apesar de originalmente adequado ao pretexto de um território social disputado por masculinidade, típico dos filmes de Sam Peckinpah, o diálogo extraído ao excelente Cães de Palha serve na perfeição para apresentar The Air Force, a mais recente charada proposta pelos Xiu Xiu, anómalo veículo do romantismo torturado que desde sempre explora Jamie Stewart com parcerias rotativas:

(em tradução livre)

Reverendo Barney Hood: Radiação. Ora aí está uma lamentável dispensação.

David Sumner: Certamente.

Reverendo Barney Hood: Desde que não implique outra bomba. Você é cientista – será capaz de negar a responsabilidade?

David Sumner: E você, é? Para mais, não haverá reino que tenha vertido maior quantidade de sangue que o de Cristo.

Reverendo Barney Hood: Isso é Montesquieu, ou estarei errado?

David Sumner: A sério?

Muito a sério, cedo se descobre. Embora pudesse o título fazer crer que o novo disco disco preparava uma paródia à divisão militar que conduz os ataques aéreos coordenados pelos Estados Unidos da América, o disco em si não se apraz a fazer humor acerca da destruição massiva (o próprio Jamie esclareceu isso em entrevista recente ao Bodyspace). O único riso capaz de provocar o rosto de Jesus Cristo, escancarado na capa do disco, será um riso amargurado ou quanto muito de embaraço, tal é o descaramento do associativismo que une em tridente o poder Republicano, Igreja e NRA. É obviamente pretensioso e voluntariamente polémico utilizar a tal imagem na capa, mas a pretensão já é nota dominante nos Xiu Xiu desde Knife Play e aceitar isso é quase condicionante obrigatória para mergulhar no pântano de catarses sem criar alergias. E daí pode até Jamie Stewart estar a tentar expor perante todos a sua projecção absolutamente pessoal do rosto que exibe a entidade omnisciente face a tudo o que escreveu até aqui e cujo desagrado ou reprovação se descobre às rugas formadas acima das sobrancelhas. Em qualquer um dos casos, o álbum presente arrisca-se a ser o primeiro a sumariar os anteriores (uma espécie de Murray Street ostensivamente ferido) e assume-se, para já, como responsável pela desintegração das fronteiras que separam a tríade de temas recorrentes na carreira de Xiu Xiu: sexo, religião e política – pólvora que inflama galhardetes trocados no diálogo transcrito e quase sempre os principais suspeitos de arruinar o ambiente saudável de um salão amenizado em tertúlia. Os Xiu Xiu de The Air Force não se estão pelos ajustes.

Atendendo ao volume de tóxicos que expelem esses temas quando friccionados violentamente, podia-se até julgar que Jamie Stewart os tratasse com um par de pinças ou camuflados por metáforas auxiliares. Mas o maldito bardo faz por ampliar a ferida ao ponto do grotesco e vivamente gráfico de um Bukowski, como se atrofiasse o conteúdo traumático da escrita de um Billy Corgan – entregue a “Disarm” - até ao mais doentio e grosseiro dos seus estados sucedâneos (partindo do principio que é sincera a perturbação do ditador abandonado). Como é habitual, fazendo-o com a pompa que exigiu a coroação do Último Imperador, premeando até um primeiro plano a poder move-montanhas dos coros altivos (o de “Boy Soprano” desafia qualquer apogeu recente) e superando-se a si mesmo em termos da excelência e durabilidade preceituosa que evidenciam os arranjos compactados em The Air Force. Coincidentemente, tornando incisivamente fatais todas os dardos instrumentais – riffs mancos, sintetizadores e metais à lei do carrasco - que no universo Xiu Xiu vivem em duelo sem fim à vista. Sem o oportunismo vampírico de Madonna, Jamie Stewart evita a saturação que adviria de uma conduta narcísica (que, ainda assim, é marca vincada do próprio) e requisita para a ocasião os préstimos do mais versátil membro dos Deerhoof, Greg Saunier que habitualmente se senta à bateria da banda de Milk Man, e a habitual associada Caralee McElroy cujo protagonismo no núcleo Xiu Xiu é cada vez mais evidente.

Ajudará à imposição desse dado o facto de, pela primeira vez no percurso dos Xiu Xiu, Caralee McElroy merecer para si uma música a que cede apenas a doce voz, mas que usufrui da sua condição feminina para mais uma jogada de transmutação por parte da persona assumida por Jamie Stewart, que ocupa o corpo da prima para em “Hello from Eau Claire” discursar um revelador: I know it’s stupid to dream that you might think me as man. Ou seja, vai por aqui um jogo de géneros e encaixes que combina de várias formas. Definitiva e imediatamente marcante será mesmo a presença daquilo que parece ser um glockenspiel em inspirado acerto de linhas memoráveis que atrairão até “Hello from Eau Claire” sedentas e sucessivas escutas. Marca automaticamente o presente ano, tal como já marcavam poderosíssimas alíneas de reportório como "Bog People" ou "Crank Heart". Além disso, ocupa um posicionamento estratégico no bombardeamento incógnito – faz parte do esquema incessante que não cede tempo a fôlegos (longas introduções ou decrescendos) entre músicas economicamente acutilantes. Apontadas ao nervo.

Contudo, a bomba de maior envergadura bélica permanecia ainda por largar. Sem que nada o fizesse prever, eis que por altura do clássico instantâneo “Save Me Save Me”, Jamie Stewart atreveu-se a – perdoem-me a apreciação provinciana – apontar o seu romantismo à cidade Invicta e a frisar o aspecto mais soturno das suas ruas menos iluminadas com um imperante: The grey light of Porto stays with you. Está encontrado o contra-ponto obscuro da alegria saudosista e vegetal que Devendra Banhart esbanjava inspiradamente em “Santa Maria de Feira” (dedicada ao município nortenho e globalizada pelas asas de Cripple Crow). O que começa enganosamente como o tema campónio de Green Acres, em escassos segundos torna pálido o rosto Xiu Xiu ao ponto do fantasmagórico-cornudo, que tão bem assenta a Tom Cruise em Eyes Wide Shut. O vertiginoso e dramático violino chegará para provar isoladamente que o Porto também merece a sua quota parte de odes de que Paris ou Londres já estão fatigadas. Está visto que a zona norte de Portugal já é uma das fontes de inspiração predilectas dos escritores de canções com maior presença na actualidade musical.

Fazendo jus à sua aparência messiânica, The Air Force contribuirá para o aumento do repúdio e cepticismo dos detractores e aproximará ainda mais os convertidos (um fã de Xiu Xiu é-o vitaliciamente). Porquê então The Air Force? Talvez pela capacidade imensa de provocar mossas de diferente profundidade em cada porção de sensibilidade que vier a atingir. Por transportar em seu nome uma bandeira que subverte premissas temáticas bem definidas ao ponto de formar simbolismos tão ambíguos quanto a grande, grande "Hello from Eau Claire" que em dias impares desperta como um ligeirinho e cândido solilóquio de Julieta hormonalmente disfuncional e nos pares surge deformada à imagem de um obtuso convite à transexualidade (ofensivamente impingido pelos samples ácidos que lhe aditam no final). The Air Force serve de altar oculto à tal urna carregada de cinzas existencialistas que aquela besta musculada colocava por debaixo do aparelho de exercícios. Certeza absoluta, apenas uma: love is a battlefield. Recolha até ao abrigo mais próximo quem não estiver preparado para ser cúmplice deste ataque prestes a vitimar mais uns quantos apaixonados sarcásticos. Uma vez mais, os Xiu Xiu infligem danos irreversíveis.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
01/09/2006