Quando recentemente noticiaram o leilĂŁo de um lote imenso de bonecas Barbie, a coleccionadora cessante frisava que o valor adquirido pelo precioso item resultava de um extremoso cuidado na preservação dos pequenos utensĂlios e fatos espampanantes que acompanharam a loura de plástico em lançamentos vários – limitados ou exclusivamente europeus - durante quase meio sĂ©culo. A reportagem focava o brilho dos fatos de gala e trajes de noite que acumulara a Barbie e resultava a tal peça jornalĂstica numa espĂ©cie de retrato do cosmopolitismo em miniatura, para o qual tambĂ©m contribuĂa o facto da variedade sugerir que seriam inĂşmeros os estilistas e criadores a tecer a roupa que cobre a pele do brinquedo da Mattel. A volátil voz que abençoa Yvonne Cornelius – Niobe, em disco - faz dela mais do que um objecto limitadamente articulado, vale-lhe o convĂvio directo com reputados estilistas (recentemente, os Mouse on Mars) quase sempre encarregados de lhe frisar o que de mais categĂłrico e essencial possa ocultar alĂ©m do vĂ©u que separa o seu âmago criativo dos curiosos barrados Ă sua porta.
Niobe – um pouco como a japonesa Tujiko Noriko que, em algumas circunstâncias, lhe Ă© paralela – ainda constitui um delicioso mistĂ©rio que, por via inversa Ă da esfinge que perdeu o nariz, se vai revelando Ă medida que ganha forma um rosto magnĂ©tico, que une peças coleccionadas e limadas pela mĂŁo do tempo. Em White Hats, Niobe cede cortesmente a receber ouvidos admiradores para a escuta de treze danças de salĂŁo distintas, partilhadas com uma mĂŁo cheia de produtores e multi-instrumentistas que constituem equilibradĂssimo grupo de colaboradores generosamente responsáveis pelo insuflar do brilho que reserva a ocasiĂŁo (contudo, merecerá o prolifico Wachsel Garland uma distinção especial pelo papel que possa ter tido nas mais brilhantes faixas e em arranjos tĂŁo imensos como aquele que embala em “None But One”). AtĂ© porque, apesar de bem acompanhada, Niobe nĂŁo enceta manobras de protagonismo com o intuito de escalar numa suposta tabela que posicione divas. NĂŁo existem por aqui super-favores por parte de um super-produtor de testa intimidante.
Sobra essĂŞncia e requinte suficientes para fazerem deste momento uma epifania de proporções selectas (no que a instrumentos diz respeito, mais propriamente). Necessitam de um curtĂssimo perĂodo de tempo as canções a desfile para deixar bem assente a ideia de que nĂŁo terá sido uma produção pragmática a solucionar ou a remediar cosmeticamente quaisquer carĂŞncias de raiz. Note-se, por exemplo, na folk de olhos semi-cerrados que alisa a cama a “White Hats”, tornando-a uma daquelas jĂłias que parecem existir desde um tempo em que nĂŁo se vislumbrava sequer a mĂnima ideia do que seria submetĂŞ-la a um tratamento computorizado. Tal como essa, outras tantas parecem ser apenas plantas raras que se viram obrigadas a acumular minerais fortificantes atĂ© serem colhidas por quem lhes desse melhor utilidade. “Phosphorous” Ă©-lhe quase gĂ©mea, com a diferença de acrescentar uma longitude onĂrica ao cruzamento instrumental daquilo que parece Vini Reilly (o lendário guitarrista que ainda mantĂ©m activo e recomendável o seu aliás Durutti Column) perdido entre o aluguer de duas bilhas de ar e o caminho mais longo para a Atlântida. TĂŁo incerta Ă© a alternância de gĂ©neros visitados que chegam a surgir de rompante o contágio perfumado empregue pela disco alienĂgena de “Up Hill and Down Dale” ou “Cool Alpipe”. A segunda coloca um sorriso no pano que cai ao encerrar White Hats.
Tal como parece indicar o seu tĂtulo, White Hats aponta algo nostalgicamente para o tempo áureo da candura como qualidade talhada para frisar as qualidades mais naturais Ă chanteuse divinizada por acaso – quase como a girl next door que a Playboy de finais de 70 retratava Ă rotina ao jeito de feliz equĂvoco, resultante em pequeno milagre de bairro. NĂŁo se medirá certamente Niobe pela mesma tabela que avalia o volume vácuo da produção que sustenta a carreira a Gwen Stefani ou, desde há pouco tempo, Fergie. Yvonne Cornelius joga numa liga diferente: libertou montanhosas sensações de relevo variável, permitiu que geĂłlogos vários alisassem esteticamente as rugosidades Ă s mesmas e cobriu tudo isso com um adocicado recheio branco. ChapĂ©us há muitos, mas nem todos ostentarĂŁo a aura que coroa o talento de Niobe para a escrita de canções que primeiro vĂŞem nuas ao mundo e que sĂł depois alguĂ©m veste como se de Barbies se tratassem.