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Matmos The Rose Has Teeth in the Mouth of the Beast

2006
Matador / Popstock!


Surpreendentemente, um único e epicêntrico grau separa a dupla Matmos do infame realizador Lars Von Trier: a actual recordista das reedições, Björk. Ela que desde sempre procurou desenvolver em paralelo à sua música o subtexto fabular do capuchinho vermelho, que é dominante em momentos vários da carreira e anexo à persona exótica exposta mediaticamente. Senão observe-se uma curta linha cronológica que esclarece bem isso: o teledisco de “Human Behaviour†invoca escancaradamente a fábula, “Hunter†(Homogenic) invertia os papéis e Björk discursava pelo predador, o recente “Triumph of the Heart†encontrava-a a cumprir uma distância emocional para remendar um casamento com um gato e vezes sem conta a finlandesa atreveu-se a percorrer submissamente talk-shows onde era interrogada como uma espécie rara. Em todos os casos, a candura e ameaça são pólos magnéticos.

Ainda que a intervenção não lhe seja creditada nos requintados cartões que acompanham o disco aqui analisado, Björk intervém vocalmente com um discreto e secretamente sussurrado The Rose Has Teeth in the Mouth of the Beast, logo na primeira faixa homónima. Com isso, confessa finalmente que o barrete vermelho também lhe serve (e que se sente aconchegada entre os espinhos de excentricidade que desenvolvem os Matmos em nome próprio e, de modo camuflado, ao serviço dos discos em que colaboram com Björk). Pois não estranham também os Matmos o papel do lobo mau bestialmente bicéfalo a que vestem a pele estes arqueólogos de sons bizarros, permutadores de contextos (mais que nunca), doentios cumpridores de métodos conduzidos até às últimas consequências, arquivistas exaustivos que mascam violentamente todo o tipo de informação suculenta. Ou seja, características maquiavélicas que os não deixam assim tão distantes de Lars Von Trier, sendo, talvez por isso, legitimo considerá-los tão megalómanos e tirânicos quanto este.

Se a lógica imperasse, as suspeitas imediatas ditariam então os Matmos (Drew Daniel e M. C. Schmidt) como figuras tão odiadas quanto Lars Von Trier em algumas esferas mais sensíveis ao seu terror psicológico. Porém, não se levam tão a sério estes rapazes - apesar do obsessivo e irritante lançamento paralelo Rat Relocation Program ser tão ofensivo quanto o Dogville que realizou o dinamarquês. Neste The Rose Has Teeth in the Mouth of the Beast, os Matmos decidiram-se por se multiplicar em assumidas elegias a figuras culturais (algumas delas, bem obscuras) cuja obra ou unicidade da mesma os inspirou a elaborar um plano que, de alguma forma, reproduza um momento marcante da vida dos homenageados e proporcione um acervo de elementos sonoros orgânicos condenados ao fragmentário (re)tratamento digital característico da dupla. Muito resumidamente, é essa a premissa do disco. A título de exemplo, refira-se apenas que “Germs Burn†(dedicado a Darby Crash dos lendários Germs) manipula o som que produz a queimadura de um cigarro no pulso esquerdo – medida que servia de ritual iniciático aos devotos da velha glória punk de Los Angeles. A ocasião presente revela-se portanto adequada a quem explorava sons clínicos em A Chance to Cut is a Chance to Cure ou a fricção de metais bélicos em The Civil War. The Rose Has Teeth encontra os seus autores em período de plena prosperidade criativa – de tal forma que quase parece edificar-se autonomamente o labirinto de referencialidade a cujos corredores se escuta, de facto, música. Tecida a partir de retalhos muitas vezes ínfimos, mas ainda assim música. Dancável, estimulante, idiótica.

Além disso, o lubrificado encaixe que conhecem no disco a referencialidade e musicalidade apontam directamente para o outro realizador bem famoso: Quentin Tarantino, que, principalmente em Pulp Fiction, soube como poucos moldar continuamente uma espessa coolness que devia tanto às invocações cinéfilas como aos êxitos de surf music recuperados ao brilho dourado da década de 60. Experimente-se repetir mentalmente os termos Wallace, Royale With Cheese, Caine e Fonzie e muito naturalmente se obtém uma linearidade que quase pode ser cantada. Quem tem os diálogos decorados, sabe dessa musicalidade (tal como o sabia a Rádio Marginal que chegou a transmitir na integra (?) a pista-sonora de Pulp Fiction como uma normal emissão de rádio). Em comum, os universos de Tarantino e dos Matmos têm a fixação pela contra-cultura. O primeiro vampirizou o que de mais vital tinham para oferecer o blaxploitation e o cinema de Hong Kong. Os Matmos não se acanham minimamente e vão a todas.

Os resultados oscilam entre o surpreendente e o meramente trivial. “Tract†faz com que um útero de vaca se pareça com um sample distorcido de uma linha de sopro dos Morphine ou New Wet Kojak – servindo esse aparato como metáfora dedicada à feminista radical Valerie Solanas. “Public sex†é realmente tão abruptamente gay quanto as coxas bronzeadas do Rob Lowe e, ao amassar até um ponto irreconhecível todo tipo de sons libidinosos, resulta num exercício disco que não descartariam os Soft Pink Truth (debochado projecto paralelo aos Matmos). Repetir em loop “mântrico†a voz de Antony Hegarty (sim, esse) em “Semen Song†não será uma opção propriamente subtil, mas vale à misteriosa faixa a elegância onírica que acrescenta a harpa sempre bem-vinda de Zeena Parkins (aqui tocada quase como um koto japonês). “Snails and Laser†– que usa sons extraídos a um theremin sensível à luz - confirma as suspeitas de que, em Twin Peaks, bastaria um estalar de dedos a Audrey Horne para converter à bisexualidade (e a um charme quase James Bond que solta o final da faixa) um personagem tão frio como a Mulher do Tronco. The Rose Has Teeth convence.

Posto isto, já deu para entender que os Matmos desenvolveram por aqui dispositivos e ideias que muito facilmente podiam servir à corporização espaçada de três ou quatro discos. Além de parecerem cada vez mais impacientes, tal é a força do seu extravasar criativo, os Matmos surgem desta vez em cena como os workaholics de laptop que, com a atitude de terroristas non-sense, ameaçam num futuro próximo sequestrar para os seus caprichos mais uns quantos universos temáticos (mais ou menos respeitáveis, só o tempo dirá). Provavelmente teriam sido capazes de um disco virtualmente idêntico sem recorrer a órgãos de bovinos ou à escravização das caracoletas que serviram a “Snails and Laserâ€. Fosse assim, e o fascínio que sobre eles incide seria muito mais ténue e a extensão deste meu texto muito menor. Fosse assim, e arriscariam-se a ser confundidos com um qualquer assalariado que gere a electrónica como utensílio para ganhar pão. Morte aos Matmos. Longa vida à liberdade que proporciona a excentricidade compulsiva.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
08/08/2006