Fosse o glitch um estimulante pornográfico e o vĂdeo de “All is Full of Love”, que Chris Cunningham filmou exemplarmente ao serviço de Björk, seria a mais sublime das suas representações erĂłticas. Isto porque a homogĂ©nea omnipresença do amor no tal teledisco pode ser entendida como um preenchimento de espaço que obriga o glitch a conter-se entre as suas estribeiras de imperfeição. AlĂ©m disso, o aspecto cromático e luzente adquirido por Cunningham anda longe da cacofonia que associarĂamos a um glitch ampliado (as criaturas grotescas de Mat Brinkman ou os Maggots de Brian Chippendale – ambos pilares da cena de Providence, Rhode Island – sĂŁo expoentes disso mesmo). A desafiante e ainda por amadurecer label francesa, Baskaru, que sĂł agora atinge a meia-dĂşzia de lançamentos, propõe com os discos de Urkuma e (etre) aproximações distintas a esse nirvana da imperfeição a que se convencionou apelidar de glitch.
Muito mais hostil e labirinticamente complexo que o parceiro abordado nesta resenha, Urkuma serve de disfarce a Stefano de Santis nas suas projecções transcendentais de murais sĂłnicos elaborados a partir de temas mĂstico-religiosos - neste caso, a transposição para um renovado plano estĂ©tico de um mosaico que o monge Pantaleone elaborou para servir de chĂŁo Ă Catedral de Otranto. O mesmo encontra representadas figuras animais a tocar harpa e outros instrumentos. Ă€ questĂŁo que o interior do digipack coloca – Alguma vez atribuiu um instrumento musical a um animal? - Ă© legitimo responder que, sem a habilidade fantasista da fauna Disney, um bicho nĂŁo faria muito de um trompete ou pĂfaro. Urkuma permite-se a contestar a essa ideia e, a partir da sua premissa, convencer quem escuta de que o glitch pode tambĂ©m ser zoolĂłgico, quando votado Ă necessidade básica de ser ruidoso e livre de movimentos (essencialmente no primeiro par de exercĂcios que comporta o disco). A irracionalidade animal verifica-se tambĂ©m ao abusivo uso analĂłgico de tapes, geralmente arrastadas como carcaças inanimadas, e a um espesso manto contĂnuo de negrume (o terminal “Retour en Arrière” quase parece Scorn) que serve de lavagem cerebral a quem possa andar necessitado de se livrar de um melodia entranhada. Rebuilding’s Pantaleone’s Tree Ă© um nocivo e inconformado mind fuck a que sĂł se sujeita quem quer.
Apesar de ser dedicada a uma notoriedade cada uma das faixas que compõe A Post-Fordist Parade in the Strike of Events, vou-me poupar a um levantamento biográfico exaustivo para contextualizar os exercĂcios que o artista sonoro Salvatore Borrelli compĂ´s em honra de gente como os Faust ou Harmony Korine (a que já nĂŁo bastava a dĂłcil faixa que lhe foi dedicada pela diva Kahimi Karie). No que diz respeito a este disco de (etre), importa, sobretudo e de acordo com a direcção que assume esta resenha, considerar os usos que o Salvatore reservou para o glitch. Pode-se dizer que por aqui surge muito mais discreto - escuta-se como a pulsação profunda a um ghost in the shell, age como auxiliar conspirativo a um rol impressionante de elementos electro-acĂşsticos de ambições lĂşdicas, mas demasiado fragmentados para cumprir tal faceta. O glitch cumpre perĂodos de ebulição vulcânica (assim acontece no cinemático “Naturalist Tokyo 3.0”), para, logo de seguida, corporizar um Pac-Man faminto que aglutina a cauda de delay a uma repetida guitarra acĂşstica radiante. AlĂ©m do seu carácter elegĂaco, A Post-fordist parece focado em purificar-se dos seus pessimismos pĂłs-modernos recorrendo a mĂ©todos luminosamente folky para as guitarras dedilhadas enquanto Ăşltima salvação - tal como acontece no dissonante, mas esclarecido, "Dogs From my Childhood Multiple White". Sendo este um mĂ©todo de recurso que nĂŁo recusariam uns Espers ou DOPO perante um beco sem saĂda (os primeiros, por exemplo, rumaram ao lado negro com o recente II). No seu pior, A Post-Fordist Ă© narcisicamente estranho e pretensioso (já que as homenagens sĂŁo, de facto, dispensáveis). No seu melhor, será um possĂvel disco de culto para os potenciais entusiastas da Itália como prĂłxima capital mundial do glitch que Ă© pau para toda a obra.
A certeza Ă© de que, apĂłs a polĂ©mica Zidane / Materazzi que gerou o recente Mundial da Alemanha, comove encontrar a França e Itália aliadas numa mesma causa musical. Mais comovem as expectativas que a partir daqui se encontram altas face ao que pode vir a reservar no futuro esta Baskaru que aterrou em 2006 como um OVNI sem matrĂcula.