Permanece por resolver o mistério que se sucedeu no momento em que Estella Warren colocou sobre a pele algumas gotas de Chanel nº5 e se fez ao trilho da floresta assombrado pela ameaça dos lobos. Filmava-a nessa altura Luc Besson, que reconstruiu a fábula do Capuchinho Vermelho ao serviço publicitário da fragrância. Depois disso, Estella esboçou um frágil talento como actriz no risÃvel remake de O Planeta dos Macacos, andou envolvida com Paul Thomas Anderson e, em pouco tempo, mergulhou no esquecimento do filme série-B e séries para preencher a tarde de Domingo. Presume-se que tenha sido crucial o instante decisivo que decidiu pela loura bombástica um pacto com um destino fracassado. Katie Eastburn – metade do agora duo Young People – caminha sobre nenúfares de música esquelética (tantas vezes apenas protótipos do que podiam ter sido) e procura a todo custo equilibrar em malabarismo intenso tudo o que a perturbou durante o perÃodo de gravação de All at Once (a saber, um irmão na guerra do Iraque, relações acabadas e o stress nova-iorquino). Katie tem a sorte de ser um Capuchinho Vermelho elucidado – sabe da hostilidade que a aguarda no seu percurso terapêutico, mas traz na cestinha uma voz imensa que é impossÃvel aglutinar por qualquer que seja a combinação de instrumentos distorcidos ou perturbados.
Nem tão pouco se resume o contributo de Katie Eastburn à s vocalizações. Ocasiões há em que se ocupa de frisar ao piano um sentimento melancolicamente citadino ou exibir um temperamento mais efervescente com uma bateria mais jovial. O esquema de gravações que a uniu a Jarrett Silberman – que chegou a ser apenas baterista – incide sobre um molde Sintonia do Amor – Sleepless in Seattle, o pastelão filme romântico que encontrava Tom Hanks e Meg Ryan em extremos opostos de território norte-americano. A disposição territorial de Katie e Jarrett é equiparável: ela desabafava confissões outonais a partir da Big Apple, ele parece ter aproveitado a diversidade étnica a Los Angeles para mais eficazmente diversificar os mosaicos que aguardam a verbalidade da primeira (repare-se na veia latina do enquadramento rÃtmico da rumba psicótica que é “Forgetâ€).
A quÃmica entre os dois surge muito naturalmente sem que as marcas de distinção não se atropelem entre si. A seu tempo, Katie merece o direito a explorar um par de picos vocais - projectados num alienado sentimento cósmico –que reproduzem em intensidade aquilo que habitualmente é expelido por entre palavras enroladas em embaraço. Jarrett Silberman também não se acanha quando é chegada a altura de regredir a carnalidade emocional até ao ponto em que é apenas sombra ou memória esvanecida disso: há uma discreta e enigmática precursão que sobrevive a toda a duração da ironicamente fúnebre “Your Grave†e que por si só bastará como prova substancial do requinte que a metade masculina garante a All at Once.
Podem até os anteriores parágrafos fazer suspeitar que é absurdamente original o método usado pela dupla de natureza quase country. Katie Eastburn não será certamente uma Regina Spektor (que muitos tem desiludido com o novo Begin to Hope). A excentricidade de All at Once não se encontra à flor da pele – a sua falta de ortodoxia e abençoado pesar lunático encontra-se no detalhe dos contornos texturais, nas muralhas rugosas de ruÃdo branco que a voz de Katie trespassa. Faz, por isso, todo o sentido que os Young People já tenha passado pela 5 Rue Christine, cujos brindes de catálogo tantas vezes se caracterizam pelo tempero subversivo vertido sobre moldes que labels vizinhas exploram até à exaustão. Há muito por onde cavar nesse rico catálogo. Tal como há muito por descobrir à deslumbrante charada de dupla autoria que propõe o intrigante All at Once.