Quando a notĂcia de que Thom Yorke se preparava para lançar um álbum a solo chegou Ă comunicação social (apenas a meio de Maio deste ano, já o álbum estaria mais do que pronto), muitos terĂŁo sido aqueles que se preparavam para finalmente poder dizer: “Aqui está a prova, os Radiohead nĂŁo sĂŁo intocáveis”. Mero engano, porĂ©m: The Eraser aproxima-se do estatuto de obra prima da electrĂłnica em formato canção. Caixas de ritmos, sintetizadores, bocadinhos de sons dispersos trabalhados em laptop, riffs minimalistas transformados em base de canções (daquelas com cabeça, tronco e membros, com tudo no sĂtio) e a voz, a voz de Thom Yorke quase em nu frontal, reverb posto de lado. E as melodias, como elas estĂŁo lá tĂŁo claras, tĂŁo trauteáveis, no meio de um disco que tem fragmentos sonoros e subtilezas em cada esquina, dispostas em várias camadas. Pois Ă©, ainda nĂŁo foi desta que apanharam um Radiohead a fazer asneira.
The Eraser Ă© um projecto a solo (e Yorke abomina esta palavra, vá-se lá saber porquĂŞ), mas que tem muitos pontos de contacto com os Radiohead. Em entrevista Ă Rolling Stone, o mĂşsico confirma que as canções foram compostas num perĂodo de tempo concentrado e isolado do trabalho da banda, mas depois tem vários descuidos: o riff de “Cymbal Rush” já era antigo, as notas de piano em “The Eraser” foram sampladas de um ensaio em casa de Jonny Greenwood, “Harrowdown Hill” (primeiro single) Ă© do tempo de Hail to the Thief, “And It Rained All Night” (linha de baixo hipnĂłtica e groovy) partiu de um elemento retrabalhado de “The Gloaming” e “Black Swan” tem um sample que estava na biblioteca de trabalho da banda. Ufa! Afinal em que Ă© que ficamos, Thom? Um dia, daqui a umas dĂ©cadas, vamos ter um historiador de mĂşsica a remexer os arquivos e a identificar todas as torções porque passaram os sons de The Eraser. Mas nessa altura nĂŁo vai ser descoberta (já nem agora Ă©, pelo menos desde Endtroducing, de DJ Shadow) que a partir do velho se faz novo, que a partir do cortar, colar e retrabalhar se produzem monumentos: “Separava ritmos padrĂŁo e manipulava sons para chegar a algo novo”, explicou Ă Rolling Stone. Ouça-se “The Clock” (sim, Ă© Thom Yorke a fazer beatboxing) e tome-se atenção: duas notas de guitarra em loop ao longo de quase toda a mĂşsica. Podia ser uma desgraça, mas Ă© brilhante.
Uma boa ponte entre o trabalho dos Radiohead e The Eraser sĂŁo duas faixas de Hail to the Thief: “Backdrifts” e “The Gloaming”. Percebe-se agora de onde surgiram duas composições fortemente electrĂłnicas e quase alienĂgenas no meio desse disco: da cabeça de Thom Yorke. É um bom exercĂcio este, aliás: o piano assimĂ©trico de “The Eraser” assemelha-se a algo como “Pyramid Song”, os sintetizadores fantasmagĂłricos de “Black Swan” (a mais viciante e forte mĂşsica do disco) relembram “Where I End and You Begin”, “Cymbal Rush” tem uma melodia a espaços muito prĂłxima da de “There There”. NĂŁo se esqueça porĂ©m a influĂŞncia de Nigel Godrich (o “deus” dos produtores que agora vai abandonar os Radiohead), que foi o braço direito de Yorke no seu disco de estreia a solo, um trabalho que foi sendo feito enquanto este estava “aborrecido”, a viajar ou a ver televisĂŁo. Abençoado quem usa desta forma os tempos mortos.
Um lado que certamente será menos explorado mediaticamente neste disco Ă© a sua componente de luta ecolĂłgica: o tĂtulo Ă© (tambĂ©m) uma referĂŞncia Ă s ondas gigantes (ilustradas de resto na capa, num desenho de estilo medieval) e inundações (a que se refere directamente “And it Rained All Night”). Mas liricamente, tal como com o uso da sua voz, Yorke Ă© aqui mais pessoal do que na sua banda e sente-se que expressa os sentimentos de uma forma mais directa, nĂŁo atravĂ©s de personagens. “Harrowdown Hill” (o local onde foi encontrado o corpo do inspector de armamento David Kelly) será uma das mĂşsicas mais directas e polĂticas da sua carreira, em que Ă© questionado se o cientista se terá mesmo suicidado ou se terá sido assassinado. “Don't ask me, ask the ministry”, “Did I fall or was I pushed? And where's the blood?” e “You will be dispensed with when you’ve become inconvenient” sĂŁo versos bem directos, convenhamos. “Atoms For Peace” Ă© uma espĂ©cie de “Fitter Happier” (de OK Computer) sem o artifĂcio da voz robotizada, Thom a lutar contra os seus demĂłnios: “No more going to the dark side / with your flying saucer eyes”, diz, para concluir com “No more talk about the old days / it's time for something great”. O uso do falsete tambĂ©m Ă© revelador e o prĂłprio pano sobre o qual se desenha a mĂşsica, extremamente simples (meia dĂşzia de notas em sintetizador), leva-nos Ă conclusĂŁo de que o vocalista dos Radiohead nĂŁo pode ser mais frontal do que isto. Com The Eraser, Yorke fez a desintoxicação das guitarras e da mente. Se a lĂłgica imperar, o prĂłximo álbum do quinteto de Oxford vai ser uma experiĂŞncia rock intensamente esquizofrĂ©nica.