(Antes de mais, devo adiantar que o motivo secundário desta resenha prende-se à tentativa de estabelecer um ajuste de contas com a má fama que atribuiu ao termo bubbles um anúncio completamente imbecil e descabido em que tentava Diogo Morgado vender uma água das pedras como se possuÃdo pelo charme do Monstro das Bolachas ou similar criatura felpuda. Obrigado.)
Não esperava a sobrepovoada Arca de Noé - que emparelha em duelos ou amistosas parcerias os recenseados da nação electrónica - encontrar lado a lado duas figuras impares da categórica e seminal cena berlinense, Ellen Allien e Apparat. Como se blindado contra todas as falhas que pudesse acusar o cumprimento da improbabilidade, o sistema agora aliado apresenta resposta para cada bala de cepticismo que se lhe aponte. Como podem ser alternadas ambições tão divergentes quantas as de Apparat – habitualmente dedicado à meticulosidade de uma aplicação cirúrgica de elementos - e Ellen Allien – recentemente elevada à condição de diva de um techno magno -? Através da democrática infusão de intervenções. Nunca chegando as marcas pessoais a anularem-se entre si. Será realmente favorável mediar dois alcances opostos (quando Apparat favorece da curta duração do EP e a actual Allien armazenar em si uma grandeza que transborda a um longa duração)? Certamente que sim, com base num espÃrito united we stand, divided we fall - encontrando um meio termo ideal entre o atrofiamento do primeiro e a megalomania da segunda. Resultarão sobrepostas duas sensibilidades emergentes da mesma escola germânica pragmática e centrada na eficiência? Às mil maravilhas, atendendo a que exala a Berlim o comunal oxigénio que preenche os pulmões ao corpo hÃbrido que aqui adquire forma. Não adianta de facto falar na frieza germânica. Bastará a essa elação a escuta dos últimos lançamentos da B-Pitch Control que agora avança com Orchestra of Bubbles. Berlim é a nova Kingston.
Facilita a lógica à resolução da equação que torna primordial o tÃtulo do disco: é borbulhante de facto o núcleo da encruzilhada que intersecta duas perspectivas cerebrais. Borbulhante como se resultante da efervescência que produz o encontro em Berlim (a que a autora de Thrills descobriu a outra metade após a queda do muro e que mudou a vida a Sascha “Apparat†Ring quando se mudou da provÃncia). Não tardou o destino a ditar comportamentos. Allien abundantemente artilhada com uma electrónica que rasga os espaços como feixes de luz. Apparat permanentemente pronto a remendar os estragos com um ping-pong exacto e robótico de Ãnfimos dispositivos sensoriais oleados a glitch e linhas minimalistas aplicadas como acupunctura. Não se conhecia uma quÃmica tão marcante desde que aquele parzinho amoroso tentava a melhor forma de escapar vivo ao naufrágio do barco que nem Deus era capaz de afundar. Faltavam contudo ao filme de James Cameron os tomates hermafroditas que pesam suspensos à s bolhas multi-coloridadas de Bubbles. Não hajam dúvidas, a atitude frontal do disco é a de um statement.
De seguida, zapping diagonal por entre faixas. O primeiro e elucidativo single “Turbo Dreams†encontra Mallory Knox a publicitar os benefÃcios sexuais ao interior almofadado de um Toyota desportivo. Utilização simplificada de linhas entranháveis, com emulação de guitarra incisiva no lugar da embraiagem. “Retina†recupera o alerta ecológico à s cordas imperiosas de “Hunterâ€, que abria Homogenic a Björk, e trata de utilizá-lo como combustÃvel a um serpenteante combinado de texturas que se movem à velocidade da luz. Ritmo constante – “pum-pum-pum-pa-ta-pum-pum†- torna fumegante as narinas à locomotiva “Jet†– momento maior movido a ruÃdo branco destilado e tremente arritmia de gorgulhos tornados berlindes. Depois, uma fase intermédia menos intensa, mas igualmente sólida. Glitch à beira de eutanásia no quase espiritual “Edisonâ€. Bolhas aos milhares e estruturalmente dispersas no capsular e marchante “Bubblesâ€, em que Ellen Allien deixa em aberto a possibilidade de vir a intervir mais vezes vocalmente num próximo disco. Esperemos que sim.
E daà talvez tenha sido o admirável mundo novo que se descobre ao swing entre casais a infundir de diversidade Orchestra of Bubbles. Isto porque Holger Zilske, produtor dos últimos discos de Allien, entretanto veio a colaborar com Miss Kittin no narcisico I COM e, em jeito de escapadinha, a primeira não se acanhou em assumir a atracção por Apparat. Resulta a relação por força de um imparável magnetismo que forma bolhas entre os extremos de uma lâmpada de lava. Na verdade, arrisca-se a ser neste caso redutora qualquer aplicação que se tenha reservada para o techno. Temos caso sério em termos de disco de dança? Permito a que seja Simão Sabrosa a utilizar a sua resposta recorrente por mim: Sem dúvida. Hajam dúvidas e tratarão de dissolvê-las as bolhas verticalmente dispostas na bola de cristal do melhor disco nocturno em largos, largos meses.