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Steinbrüchel Opaque (+ reinterpretations)

2005
Room 40


São cada vez mais as reservas dos que acedem a assistir a um filme de Lars Von Trier, pois é mais que certa a infalibilidade da rasteira que prega o dinamarquês a cada novo trabalho. Quando há dois anos, o festival Doclisboa exibiu The Five Obstructions - um exercício formal que incide sobre a variância -, dificilmente se anteciparia que voltasse a abater-se sobre o seu final aquele pesar cruel que nos emperra a locomoção à saída de Dogville. Ou para isso apontava um trabalho que tem como registo o documental e cuja autoria Von Trier partilha com o conterrâneo Jørgen Leth. Apesar de à partida poder parecer cisudo, The Five Obstructions revela ser um manipulativo e sarcástico jogo de condicionantes: Jørgen Leth era incumbido de voltar a filmar por cinco vezes uma curta-metragem da sua autoria – o manifesto experimental The Perfect Human de 1967 - a partir de uma série condicionantes impostas por Lars Von Trier e que o próprio revelava com a leviandade de alguém que dita uma lista de compras. Dessas constavam coisas com um tempo-limite absurdo para cada plano, locações bizarras para as filmagens e tudo o mais que impedisse Leth de se repetir. No fundo, acabava por ser o realizador desafiado a ocupar o lugar da vítima em vez do público, que, por uma vez na vida, encontrava-se no direito de rir ao lado de Von Trier. Além disso, sobrava a noção de que nem a mais absoluta obra se encontra livre de ser desconstruída quando a subversão anda à espreita.

Nem por isso estarão relacionadas com a subversão as semelhanças entre o duelo cerebral anteriormente descrito e o conceito que serve de suporte a Opaque. Passo então a descrever a sucessão de circunstâncias que resultaram na apresentação de “Opaque” e respectivas reinterpretações, tal como aqui surgem. Na Primavera de 2003, Ralph Steinbrüchel foi convidado pelo organização do festival Takltos, escalado para a ocorrência em Berna, a compor uma peça que, emitida em loop, pudesse ser escutada a uma sala equipada com um sistema de surround 5.1. Resultou desse desafio “Opaque” – projecção de tons justapostos, cujas trocas de direcção são consonante ao flanquear de micro texturas anexas e ocasional crepitar de impurezas no lugar de glitch missionário e não descontrolado. Opaco porque impróprio a servir de tabela a camadas que, adicionadas, constituíram excesso. Voltava Steinbrüchel a compor uma peça pronta a funcionar em autonomia (exceptuando a do espaço que lhe foi destinada), tal como acontece no MP3 que acompanha a quarta Sonic Scop Quarterly (excelente publicação que a portuguesa Grain Of Sound disponibiliza gratuitamente).

A partir daí, Lawrence English, patrão da Room 40 e também ele habituado a camuflar-se conforme a ocasião, decidiu distribuir, por músicos da sua esfera, três fragmentos diferentes da peça “Opaque” - isto sem que os visados a conhecessem na integra e impondo à acção de cada uma margem de manobra que os colasse ao que melhor sabem fazer. Chris Abrahams (dos Necks) devia usar apenas piano, Ben Frost cingir-se ao processamento de feedback, Taylor Deupree lidar com o processamento de melodia, Oren Ambarchi combinar os fragmentos através da guitarra e Toshya Tsunoda.limitar-se a uma palete de sons extraídos a field recordings. O interesse de cada reinterpretação varia, mas não deixa de ser gratificante perceber como cada um aproveita uma qualidade que lhe é intrínseca para lhe iluminar o caminho criativo condicionado pela “cegueira” de desconhecer o alvo na totalidade. Passa o ouvinte a ser cúmplice de English e Steinbrüchel na cilada. Os endereçados que se amanhem. Chris Abrahms destoa dos restantes manipuladores - até porque é o único a incluir o trabalho de Steinbrüchel na sua forma inalterada -, mas será certamente aquele que surge com o exercício mais lógico do lote. Isto porque há uma qualquer cumplicidade entre o piano que persegue a cauda tonal a Steinbrüchel e aquele que parece à beira da condição clínica no recente Thrown (gravado para a Room 40). Ben Frost tem no seu apelido a chave para o tratamento congelante que aplica no tratamento do glitch que trás “Opaque” e, de entre os intervenientes, será aquele que mais incide sobre um enquadramento atmosférico. Taylor Deupree não andará distante da radiância estival a que nos habituou com January. Em “Forest / Opaque” encontramo-lo a regar, em modo progressivo, os elementos a que teve acesso e a esperar que floresçam ao ponto de se tornarem indomáveis e férteis (ou seja, prontos a conhecerem um terceiro uso). Oren Ambarchi – que já fez parte da Network de Damo Suzuki – reincide sobre a dissecação sónica do tempo, que já o encontrara ao lado de Robbie Aveniam no abrasivo Clockwork, e cronometra a desintegração de uma ressonância que faz da guitarra uma ceifa. O encerramento de cerimónias cabe a Toshyo Tsunoda e à anti-materialidade de um exercício climatizado por uma frieza desoladora.

E, ainda que o nome a constar da ficha técnica seja o de Steinbrüchel, acaba a encruzilhada por dar espaço a que cada identidade musical se revele sem recear o atropelamento do vizinho. Nessa medida, Opaque é muito mais uma autenticação selectiva das qualidades de cada um do que propriamente um dispositivo de condicionantes. Cativar cada interveniente a concentrar-se no domínio do seu know how e limitá-lo a uma parte ínfima do que por si só é minimalista, resultaria sempre numa depurada vindima de excelência. A isso chama-se essência e é essa que transborda em Opaque.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
10/04/2006