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Earthless Sonic Prayer

2005
Gravity


Enquanto serviço, a eficiência do stoner mede-se pelo desequilíbrio provocado por atordoamento do aparelho auditivo. Um cliente satisfeito é aquele que cambaleia até casa após um concerto que seja capaz de lhe dizimar pela metade o equilíbrio do corpo. Recordo com agrado o trajecto de eléctrico que me conduziu até Santo Amaro a partir do Paradise Garage, onde os Fu Manchu - antes de mergulharem em espiral de discos inferiores – haviam preenchido o ar respirável com um gás decibélico capaz de fazer reconsiderar as opções a tomar na vida aos 20 anos. Nessa noite, não sentia a ponta dos pés, nem tão pouco o contacto deles com a sola dos sapatos. Ao stoner recomenda-se uma postura sarcasticamente distante que não se acanhe de prolongar – tão vastamente quanto necessário – o período de tempo que toma o tapete para se escapulir de debaixo dos pés (membros anatomicamente habituados a depender de uma base) .A flutuação psicológica bateu-me mais uma vez à porta por intermédio desta Sonic Prayer.

Um dos membros de X-Wife dizia numa entrevista que o disco de rock ideal era aquele que dava uma vontade infantil de pegar numa raqueta e, de joelhos sobre o sofá, fingir que se a tocava como se perante o público de Woodstock. E se no lugar da raqueta estiver uma pá que escava abusivamente o terreno que separa os Earthless de um farolim que faz do rock mais ortodoxo um feixe de luz? Parece ser esse o utensílio amnésico de que se munem Isaiah Mitchell (Guitarrista com “G” grande), Mario Rubalcaba e Mike Eginton – que muito discretamente compõem um super-grupo (atendendo a que o primeiro era já força matriz dos Nebula e o segundo integrava os umbilicalmente ligados Rocket from the Crypt e (extintos) Hot Snakes).

Assim que atingida uma altura passĂ­vel de ser denominada de sideral, os Earthless desafiam a elasticidade dorsal que um stoner mentecapto consegue dobrar apenas (até) certo ponto e, nesse estado de transe aventurado, elevam cada peregrinação sĂłnica Ă  marca dos 20 minutos. “Flower Travelin’ Man” (menção aos japoneses Flower Travellin’ Band), assim como “Lost in the cold sun”, ocupam o plano cĂłsmico de buracos negros que centrifugam o apego a uma superfĂ­cie aprumada por convenção, ao ponto de – assim que as colossais jams passam Ă  condição de corpos gasosos - acabarem por se dissolver no hiperespaço quaisquer referĂŞncias que permitam distinguir o inĂ­cio do fim, dominância do baixo sobre a guitarra (ou vice-versa) e a identidade do instrumento que, em primeiro lugar, terá incitado Ă  prece sĂłnica.

A avalanche Earthless ultrapassa aquela indefinível fronteira que separa o pós-grunge dos manifestos psicadelicamente apetecíveis e impressionáveis (e não demasiadamente eruditos), aqueles que reafirmam o sentido da frase proferida por Drew Ballinger assim que deu por si como derrotado no duelo de banjos de Deliverance - Fim-de-semana alucinante: "Estou perdido.". E estava, já que havia de ser ele o sacrificado pela arrogância citadina com que os quatro trataram o meio hillbilly adjacente ao rio Cahulawassee. Da mesma forma, Sonic Prayer exige uma dádiva, um naco de candura auditiva a ser cilindrado no seu altar em forma de menir.

Dá vontade de ganhar barba e limitar os hábitos higiénicos aos praticados por um ermita. Na eventualidade de se tratar realmente de uma oração, Sonic Prayer será primariamente vocacionada para uma intervenção herética – daquelas que, indecentemente, estimulam a que se sacrifiquem vezes sem conta 40 minutos de tempo útil em prol de uma anti-gravidade que se descobre apenas à cauda de discos isolados de factores externos como a pressão, escassez de permissividade e, sobretudo, presunção.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
29/03/2006