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Wayne B Night of the Hunter

2005
Quatermass / Flur


A ansiedade de um público faminto mede-se também pela inventividade aplicada aos métodos usados para enganar a fome. Exemplo flagrante disso será a reutilização abusiva de que foi alvo o par de discos originais conhecidos aos Portishead – tetas sagradas do protótipo trip hop, de que se tem feito sopa de pedra enquanto os autores de Dummy não quebram um muito badalado hiato (superado apenas por aquele que mantém em anedótico suspense o lançamento de Chinese Democracy dos Guns n’ Roses). Embora variem de qualidade, os resultados de diferentes perspectivas de apropriação podem ser descobertos um pouco por toda a web. Por lá gravitam um infindo número de remisturas, samplagens descaradas dos clássicos “Numb” ou “Sour Times" ou até mesmo discos que combinam a voz isolada de Beth Gibbons com inéditos contextos jazzísticos até aí desprovidos de voz. Pesando a certeza de que a soma da espessura dos ramos derivados será já superior à dos discos que lhes serviram de tronco. Além disso, é sabido que o tempo que toma a espera de um Messias é propício ao surgimento e aceitação de burlões. Mediante isto, é favor consultar as compilações Winter Chill para aceder à lista de terroristas que têm atribuído um mau nome ao género que gatinhou a partir de Bristol. Poupe-se a tal esforço: Night of the Hunter serve enquanto listener’s digest das mais desinteressantes repercussões do trip hop. Sim, é tão bera quanto isso.

Pior só mesmo o carácter maléfico do Reverendo que protagonizava a obra-prima noir que partilha do nome do disco disposto na marquesa. Além do memorável tema musical, que mereceu uma versão dos Fantômas em The Director’s Cut, ecoava ao filme um monólogo em que Robert Mitchum – temível como nunca – invocava a parábola bíblica de Caim e Abel para descrever a luta constante entre o “ódio” e “amor” que trazia tatuados nas mãos e, com a vitória do “amor” sobre o oposto, convencer os circundantes de que era um bem intencionado enviado do Senhor (quando, na verdade, era um dos vilões mais aterradores do cinema de 50).

. De forma desviante, Wayne Magruder tenta fazer-se passar por agente capaz de descrever musicalmente o atrito que produz a colisão de sons caracteristicamente pastorais e correspondentes densamente urbanos. A dissecação dos últimos não será propriamente estranha àquele que já compassava a amargura citadina no lugar do baterista dos Calla, que, dizem as más línguas, serão apenas uma invenção insuflada por locutores de rádio com um fetiche por Brooklyn (de fato e gravata). Independentemente disso, é de facto possível escutar ecos ao caule adquirido ao lado dos Calla nas batidas de “Souvenir” ou “Oak (In the Small Hours)” (exercício sobre a banalidade de raiz etérea), enquanto que, por sua vez, as ambiências adelgaçadas de outras faixas assinalam as passagens pelos Bowery Electric e Windsor for the Derby. À semelhança desse e emparelhados em justaposição, desfilam simultaneamente uma série de confrontos mais ou menos assumidos: a guitarra acústica que recusa partilhar loft com um baixo soterrado de groove requentado, o supervisionamento do hi-fi atento às manobras sorrateira do lo fi, que por lá anda sob a forma da acústica mais crua. Reacções químicas que, em última instância, resultam em nada. Sobram entre os escombros a voz de sereia de Jana Plewa e “Back porch apology”, que parece navegar à deriva na ternura oceânica de Washing Machine, o álbum que acusou a chegada dos Sonic Youth ao ambiente familiar que a paternidade implica.

Night of the Hunter podia até cumprir o propósito que serve de fundamento aos discos da excelente label japonesa Noble – “música apropriada à rotina”. Isto no caso dessa rotina conviver bem com a nulidade do objecto ou necessitar de alternativa aos discos de Morcheeba. Aos outros, aconselha-se a audição atenta de Every Still Day, disco que Taylor Deupree gravou a partir de material recuperado aos obscuros Eisi. Ou, melhor ainda, a confecção de diferentes saladas de frutas com a colheita recolhida ao pomar Portishead. Mantendo sempre a esperança de que o "ata" finalmente se desate e traga até nós o merecido terceiro disco da entidade que, ao ser reactivada, nos livrará certamente do convívio com discos tão obsoletos como Night of the Hunter.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
21/02/2006