Há mais na música brasileira para além de pagode, samba e baile funk. Também há no “paÃs irmão†(que tem uns impressionantes 186 milhões de habitantes) espaço e massa crÃtica para trabalhar e assimilar, com inevitáveis idiossincrasias, a música de vanguarda. É nesse campo que se posiciona Eu contenho todos os meus anos dentro de mim, de input_output, que não é mais do que uma das incarnações de Douglas Dickel, habitante de Porto Alegre que é ainda guitarrista da banda pós-rock Blanched, entre muitas outras actividades. É um disco experimental, lo-fi, por vezes industrial, de colagens (com destaque para sons de filmes), mas de músicas curtas (à volta dos três minutos, com a excepção do último tema).
O álbum tem uma estética claramente fragmentada e abstracta, talvez inspirada nas várias actividades que Dickel mantém ao mesmo tempo, ou no seu gosto pela matemática. Quanto ao processo de composição, nada melhor que citar a entrevista do músico ao Bodyspace: “Fiz as primeiras experiências este ano, quando revi o filme Contacto, do Robert Zemeckis, e lembrei que eu tinha uma fascinação pela ficção cientÃfica e pelo carácter alienÃgena, digamos assim, da estática de rádio, e lembrei-me que o meu pai tivera um rádio de ondas curtas, Philco Transglobe. Comprei um outro, por sorte encontrei essa raridade, e decidi usar samples de rádios estrangeiras em músicas. No entanto, a digitalização desses sons é difÃcil, tanto que usei somente um, de uma rádio oriental, em ‘Aço, Asfalto, Plástico’ – que, aliás, foi a primeira experiência com qualidade suficiente para garantir a sua entrada num álbum. Por isso comecei a experimentar de forma mais prática: coloquei o Soundforge para gravar e, utilizando um walkman com sintonia analógica, rodei o disco de sintonia para lá e para cá, aleatoriamente. Depois, ouvi o resultado gravado e seleccionei trechos que serviriam como bases, loops e até mesmo batidas, no lugar da bateria. Então surgiu a estética do input_outputâ€.
Resolvida que está a questão da origem do projecto, falemos de algumas das músicas: “Caminho†tem uma batida cava, em jeito de pulsação cardÃaca, e termina com uma melodia de caixa de música (um ursinho à corda, ao que parece); “Escombros†é construÃda em volta de um baixo hipnótico e de um ambiente sombrio, com o auxÃlio de uma voz feminina; “Albatroz†reproduz o célebre diálogo do “saco de plástico†de American Beauty, complementado, numa segunda parte, por um trabalho minimalista de guitarra eléctrica em loop; “Banho Quente†traz uma batida e um groove electroclash, por entre vocalizações distorcidas e blips electrónicos.
O tÃtulo Eu contenho todos os meus anos dentro de mim remete para uma espécie de viagem interior: a faixa-tÃtulo, a primeira, não é mais do que Bickel a tocar uma canção popular-infantil, com quatro anos. À medida que o álbum avança, vai havendo uma componente mais rock, mais facilmente assimilável, apesar de estarmos na presença de um disco nocturno, para ouvir no silêncio: há um convite à reflexão, nos momentos em que a palavra entra em cena. Pode dizer-se, em última análise, que um disco com uma percentagem significativa de “corta e cola†será sempre um objecto muito pessoal. Mas com um pouco de imaginação esses momentos também podem ser nossos.
O registo de estreia de input_output é experimental, mas não é cansativo ou demasiado absorvente e denso: há momentos de plena ortodoxia e de “bem-estarâ€, correspondentes a abordagens mais mainstream. Visto dessa perspectiva, poucos discos conseguem equilibrar tão bem facetas quase inconciliáveis num objecto artÃstico minimamente homogéneo. Eu contenho todos os meus anos dentro de mim é um convite a uma primeira abordagem a facetas mais ousadas da música moderna. “Ouça nos fonesâ€, aconselha-se na nota de capa. A experiência é recomendável.