NĂŁo parece realmente tĂŁo improvável quanto isso a parceria que une Isobel Campbell e Mark Lanegan na feitura de Ballad of Broken Seas. A clareira que o predador circunda nem sequer Ă© um lugar estranho para Isobel, que havia já arriscado poisar a sua fragilidade de chanteuse celestial sobre a mandĂbula sexualmente voraz de Aidan Moffat. Assim se sucedia em “Pyjamas” – quinhĂŁo de Elephant Shoe dos Arab Strap - , onde era persistentemente convidada a livrar-se da roupa de noite, por alguĂ©m que achava nĂŁo haver frio para tal. Aidan sabe-a toda. Soube antecipadamente reconhecer as capacidades sedutoras da fragrância que Isobel espalha sobre o pescoço antes de se lançar aos caminhos sinuosos que percorre atĂ© chegar aos discos em que participa. Ballad of Broken Seas vive amaldiçoado pela noção de que um beijo pode tantas vezes ser um pecado irremediável (e assim já era nas Murder Ballads de Nick Cave). Perspicazmente, ocupa-se de levar a cabo um reaproveitamento musical da contenção que livrava de tentação um Johnny Cash eternamente temente perante Deus. Ou seja, contĂ©m tudo aquilo que separa os dentes ameaçadores de Lanegan da jugular perfumadamente pop de Isobel Campbell.
AtĂ© porque a pele de lobo tambĂ©m nĂŁo fica nada mal a Mark Lanegan. O seu afastamento dos Queens of the Stone Age impediu-o de se juntar Ă matilha presente nas fotos que visavam a promoção de Lullabies to Paralyze e, simultaneamente, metaforizar a ideia de que eram cordeirinhos todos os que acreditavam que a saĂda (afastamento definitivo?) de Nick Olivieri significava o fim do perĂodo áureo de um colectivo que nunca deixou de ser apenas Josh Homme e convocados. In extremis (e Ă margem desse diferendo), Lanegan ainda chegou a soltar um antecipado uivo carnĂvoro na balada que introduzia Lullabies to Paralyze - “This Lullaby”. Are you there over the ocean? Are you there, up in the sky? sĂŁo questões que, escutadas Ă luz trĂ©mula de Ballad of Broken Seas, soam premonitĂłrias na forma como descrevem um farejar expectante de sanção feminina. AlĂ©m disso, Mark Lanegan já oferecia voz a um dos temas masculinamente mais vigilantes da memĂłria recente que abarca apropriações da soul. “I Wanna Make It Wit Chu” integrava o nono tomo das Desert Sessions (o laboratĂłrio criativo que Josh Homme maneia como uma margem de que nĂŁo dispõe ao leme dos QOTSA), mas bem podia ter servido Ă venda de contraceptivos ou uma campanha institucional Ă procura de elevar os Ăndices de natalidade de uma qualquer nação. Terá certamente avolumado o trabalho das costureiras que se ocupam de manter os botões no lugar que lhes pertence.
Ao terceiro parágrafo, já existem factores magnĂ©ticos mais que suficientes para ditar que, afinal, Isobel Campbell e Mark Lanegan foram feitos um para o outro. A confirmá-lo, adiante-se que ambos já conviveram de perto com compositores um tanto ou quanto criativamente tirânicos no rumo a dar aos discos que, Ă priori, representariam esforços conjuntos (refiro-me a Stuart Murdoch nos Belle & Sebastian e de Homme nos QOTSA) Ambos nunca chegaram a ver os seus discos cumprir plenamente perante expectativas geradas por encarnações passadas - Amorillo de Campbell peca por ser demasiado derivativo; Mark Lanegan, entre, álbuns menores e outros mais cativantes (Field Songs), nunca assinou Obra capaz de anular a relativa indiferença que o assombra. Em Ballad of Broken Seas, acenam lenços brancos Ă ideia preconcebida de que o convĂvio entre os dois registos vocais – o angelical e o inconfundivelmente áspero – podia despistar-se em disfuncionalidade e debruçam-se sobre o cultivar de uma quĂmica com o empenho campestre de quem põe de pĂ© uma cabana de madeira. Tem o seu tempo a tradição do disco que resulta da justaposição sexual homem / mulher. Os desejos e pĂşlpitos de Lee Hazlewood e Nancy Sinatra brincavam Ă s escondidas há mais de 30 anos. Aqui, desejos semelhantes (se bem que mais recuados no tempo) mantĂŞm entre si uma distância preenchida por todo o tipo de melodias silvestres, arranjos sinfĂłnicos adequados a piqueniques condenados ao descalabro "Polanskiano" e tudo o mais que possa ser recuperado Ă herança da country e folk.
Contudo, Ă© sabido que a abrangĂŞncia temporal de um relicário de canções Ă© proporcional Ă manutenção que este exige. Perante isso, nĂŁo se duvide do alcance quase curativo de que Isobel dispõe para dar conta do recado. Aquele seu sexto sentido pop – Ă flor da pele em “Black Mountain” - continua a evidenciar uma intemporalidade apenas superada pelas homĂłnimas sopas Campbell (Andy Warhol nĂŁo deixaria escapar a associação e provavelmente apropriar-se-ia de Campbell como fez com Nico). De Lanegan exige-se o que sempre ofereceu em dose generosas: o sublinhar de que nada mais há a perder debaixo do sol alĂ©m das sensações ocultas pela ameaça de vertigem. Continua intacto o poder possessivo da voz que em “Song for the Dead” (de Songs for the Deaf) parecia sugerir que um aparatoso choque entre viaturas constitui um risco menor perante o prazer que oferece a velocidade sobre rodas. Em “Revolver” – a belĂssima mini-sinfonia aqui assinada pelo prĂłprio Lanegan – a mesma voz parece apostada em provar de que mais vale viver uma paixĂŁo condenada do que condenar o resto dos dias Ă solidĂŁo.
Mediante a incapacidade de superarem, pelos seus prĂłprios meios, o que de melhor haviam elaborado em comunidade (If You’re Feeling Sinister e Songs for the Deaf, ao lado dos B&S e QOTSA, respectivamente), Campbell e Lanegan decidiram-se por fazer da improbabilidade um trunfo capaz de servir como fĂ´lego a carreiras necessitadas disso. Na senda de surpreender quem dos renegados esperasse um regresso oportunista ao passado, Ballad of Broken Seas troca as voltas e subverte os cĂłdigos da fantasia Ă moda de Shrek: desafiando a lĂłgica institucionalizada pela fábula, que sempre se ocupa de opor dois pĂłlos, e unindo esses extremos sobre espeto de atracção chamuscado pelas labaredas que ascendem da erudita pilha de discos country e folk. Haverá gente que, apĂłs escutar Ballad, ansiará por novidades Ă avĂł e caçador que o lobo transporta no estĂ´mago (leia-se prĂłximos capĂtulos da colaboração). Pessoalmente, atĂ© me convĂ©m ter alguĂ©m que se ocupe de me embalar com umas histĂłrias da carochinha. PorĂ©m, nĂŁo me parece que este seja álbum para abandonar a estante tĂŁo regularmente quanto desejado.