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Cat Power The Greatest

2006
Matador / Popstock


In the fifth, your ass goes down (À quinta ronda, vais ao tapete). Soam surpreendentemente premonitórias as palavras que Marsellus Wallace dirigia ao pugilista Butch em Pulp Fiction, quando submetidas à luz dourada de The Greatest - o quinto disco da era Matador por parte da mais canina das cantautoras felinas, Chan Marshall. Neste caso, down em referência à descendente rota de regresso que o destino reservara para a songwriter de origem sulista, agora retornada à Memphis onde gravou What Would the Community Think e, consequentemente, à região do país que lhe proporcionou a base da formação musical. Depois de alcançar praticamente tudo a que pode aspirar um escritor de canções de calibre indie, The Greatest recorre à envolvente mística dos Ardent Studios (onde Dylan chegou a gravar) para – sem pretensiosismo – conferir uma profundidade clássica que possa adensar ainda mais o cânone Cat Power. O próprio pugilista George Foreman lutava de braços abertos, numa altura em que já cumpria a decadência posterior à conquista dos títulos que lhe valeram videojogos em seu nome. Marsellus Wallace advertia Butch para o facto do pugilismo estar repleto de competidores irrealistas que acreditavam vir a envelhecer como o vinho, alegando que assim seria caso isso significasse a aquisição do azedume do vinagre (o destino mais provável para Joanna Newson) e não a obtenção de um melhor paladar com o passar do tempo. Chan Marshall marca a sua posição face à previsão do criminoso calvo e destila o seu som característico sobre um carril com o signo abrangente da Americana no lugar da matrícula, que faz desse um veículo naturalmente apto a acumular graciosamente os anos. O requintado travo clássico de The Greatest torna-o um disco instantaneamente vintage.

Com este, tal como já acontecera com You Are Free, surgiram os rumores de uma possível saída de cena - fundamentada a partir da infame aversão que Marshall mantém em relação aos encargos promocionais e rendição em palco (ainda que recentemente tenha conseguido reproduzir integralmente The Covers Record numa edição do cada vez mais lendário All Tomorrow Parties). Viesse a ser encarregado de transportar ao pescoço as cinzas de um invejável percurso, e The Greatest não faria má figura no lugar de urna suspensa apta a simbolizar um término lógico ditado por bom filho que a casa torna. Podia bem ser este um digno e derradeiro miar do cisne. Certamente que ninguém culparia Chan Marshall por encerrar a sua carreira junto dos entes que lhe são mais queridos. Os mesmos cuja longevidade homenageia com esta manifestação de fé, que mais não é do que uma tentativa ambiciosamente romântica de fazer catalizar até Memphis a devoção de quem lhe segue (doentiamente) os passos. Só o futuro próximo dirá se com esse gesto reflexivo Marshall aponta uma alternativa paternal para os que da sua alçada emocional venham a ficar órfãos.

Contudo, The Greatest não remete apenas para a Memphis de Al Green (embora a este recupere alguns colaboradores estratégicos), Rufus Thomas ou Otis Redding. Logo à largada, “The Greatest” é uma daquelas pérolas que Marshall nos habituou a encontrar incrustadas à proa do seu discurso caracteristicamente apologético. Tal como Mark Eitzel, a dona dos penteados mais cool do universo indie parece incapaz de assumir a genialidade sem ter de se desculpar por isso. Volta uma primeira faixa desarmante a representar a merecida compensação aos ouvidos de quem possa ter ficado desiludido com o contacto imediato de um concerto bizarro (mais frequentes do que seria desejável). O lamento rendido daquelas cordas parece querer revelar por Marshall que esta é a melhor forma de se entregar e que o que por aqui se sucede é mais uma tentativa de superar essa fasquia.

É pouco provável que fosse intenção de Marshall desenvolver curiosas aproximações a momentos distintos das carreiras de Rita Lee e Neil Young, mas assim acontece no seu sétimo disco. “Could We” parece condensar – na confiante e sensual intervenção do sopro - os dias de paixão em redoma caseira que Rita Lee usava como motivo para alguns dos êxitos que a levaram a singrar a solo. “After it all” podia até ser um update de “Hey Boy!” dos Mutantes (Rita Lee meio desligada), tal é a ingenuidade amnésica daquele assobio caído do céu. “Lived in Bars”, por sua vez, parece afecto ao sentimento boémio de Neil Young de Zuma, mesmo que musicalmente nada tenha em comum com um dos melhores discos de “Shakey”. “Love & Communication” tem numa guitarra puramente Young o seu rastilho e na sua incessante e vertiginosa orquestralidade qualquer coisa de Harvest que leva o álbum a terminar em tom de narrativa aberta (para bem do sono colectivo dos fãs de Chan). Pelo meio, estilhaços do gospel actualizado de Mary J. Blige (que havia já sido invocada por Chan, numa sessão gravada para John Peel). The Greatest ascende à condição do mais universal dos discos de Cat Power, sem que aparente ser forçosa a sua escalada nesse sentido.

Não é apenas o título do disco a indiciar ousadia. The Greatest é, em toda a sua glória, destemido no modo como procura reproduzir a mística e carisma dos discos de corpo inteiro cuja fisicalidade – obrigatoriamente íntegra - se desfragmenta quando sujeita aos shuffles dos leitores de MP3. O inerente aspecto de ressurreição elegíaca, aliás, faz deste o gémeo falso – mais extrovertido e promíscuo – que faltava a The Covers Record. Certamente haverá quem - com réstia de legitimidade – passe a citar a tendência de Marshall para “brincar aos clássicos” ou a imponência do primeiro single homónimo sobre as restantes faixas como evidências de saturação. Mesmo que assim seja, restam-lhe ainda outras seis vidas para nos mesmerizar naquele irreproduzível embalar balsâmico que resulta com equivalente eficácia à beira do rio Mississipi ou às portas da Sé de Braga. The Greatest não será - nem de perto, nem de longe - o melhor disco de Cat Power, mas merece à garrafeira uma privilegiada posição que mantenha inalteradas as suas qualidades. Para que daqui a 20 anos seja possível voltar a provar a sua essência e a essa colheita de 2006 tentar (re)descobrir (e entender) as motivações daquela que, entre concorrência sufocante, continua a vindimar um talento fenomenal para a escrita de canções intemporais.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
30/01/2006