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Turbonegro Ass Cobra

1997
Sympathy for The Record Industry


O mundo antes e depois de Apocalypse Dudes (ou como dobrar o cume Turbonegro às cavalitas de uma cobra fumegante)

Quase sempre, cabe ao deboche ininterrupto fazer descarrilar uma locomotiva rock. É esse o chamado pecado “Guns n’ Roses”. O protagonismo que o excesso ocupa na carreira dos Turbonegro levou a que escassa margem sobrasse para a progressão em termos musicais. Perante o intransponível Apocalypse Dudes - majestoso tratado de rock como o diabo gosta -, os Turbonegro optaram, a cada disco que lhe sucedeu, por detonar a seriedade à velocidade que o nome da banda indicia. Quando deram por si com meio mundo vergado à mercê de um auto-proclamado deathpunk, a turma de Oslo sacudiu do cabedal a pressão que isso implicava e assumiu de vez a caricatura como dispositivo de sobrevivência (assim também acontecera com os Kiss há um par de décadas). Ass Cobra documenta a génese dessa metamorfose ao dar conta dos dias em que o filão Village People ainda funcionava aplicado aos Turbonegro.

As mudanças ocorridas no historial réptil, que une conceptualmente Ass Cobra, Apocalypse Dudes e Scandinavian Leather, servem de representação simbólica à mutação sofrida pelos demónios de ganga. Como quem ainda procura a melhor aplicação para a pele satírica que acabara de vestir, Ass Cobra apropria-se do grafismo clássico de Pet Sounds e coloca uma pandilha de aspecto suspeito no lugar do presépio vegetariano que une, nas mesmas palhas harmoniosas, os Beach Boys e uma série de animais. Os Turbonegro davam a entender que o tempo das vacas sagradas tinha os dias contados. Apocalypse Dudes tem o aspecto decidido dos discos alheios a compromissos temporais e parece indisposto a tomar um rumo que não o seu (coisa de macho). A hidra ilustrada na capa com uma cabeça em falta (a da conduta correcta) representava a virilidade de quem está seguro do seu arsenal, a múltipla extensão da fertilidade criativa e a ambição poligâmica de quem nem sabe por onde escolher o que subverter ao rock do último quarto de século. No eixo descendente da trilogia, só a auto-indulgência explica a sinceridade da gravura incluída na fachada negra de Scandinavian Leather - a reincidente cobra com o seu próprio rabo na boca. O disco resultante da reunião (após bizarra separação) encontrava os Turbonegro dependentes da fórmula que lhes valera um rápido contágio da popularidade, uma banda voluntariamente votada a uma reclusão canibal (manifestada na produção que trataram de assumir por eles mesmos pela primeira vez). Custava a crer que fosse aquele o sucessor de Dudes. Scandinavian Leather é um embaraçoso deserto de ideias. Não surpreende que alguém tenha tratado de lhe abafar a ponta.

Antes do apadrinhamento tardio dos Queens of The Stone Age, da religiosa devoção da Turbojugend (o clube de fãs com filiais por todo o mundo) e da inclusão de “Prince of the Rodeo” num sketch de Jackass, tempos havia em que o lado obscuro espreitava de atalaia por uma brecha apertada que o resgatasse à garagem e o catapultasse para os estádios. Bastou para esse efeito Ass Cobra - disco em que pela primeira vez os Turbonegro envergavam trajes temáticos, que, entretanto, têm vindo a evoluir em conformidade com o avançar da discografia. O baixista Happy Tom, por exemplo, exibe uma sofisticação cada vez maior na assumpção do marujo cuja honra anda à deriva. Em conformidade com o melhoramento do guarda-roupa, Ass Cobra regista trocadilhos vocabulares capazes de fazer corar o Sá Leão: “Denim Demon” alia a fonética de “seamen” e “semen” em cópula humorística que serve de clímax ao disco. Junta-se a isso a paródia que fazem do death metal conterrâneo e o plantel circense fica encerrado. Contudo, não temem os autores de Party Animals acordar com a casa em chamas porque mantêm boas relações com essa gente extrema que mortifica o metal.

Ainda que, atendendo à fixação anal do colectivo, a retrospectiva seja a forma mais lógica de avaliar as qualidades dos Turbonegro, aconselha-se cautela a quem se aventurar pela crueza que antecede ao marco Apocalypse. Logo à espreita na escala cronológica descendente, Ass Cobra comporta uma corrosividade in your face que não agradará a quem tenha dentinhos de leite no lugar das cartilagens do ouvido. Os restantes preparem-se para ser benzidos com golfadas generosas de punk de garagem com cio, qualquer coisa semelhante ao elo perdido que une os lendários Dwarves aos Humpers (desígnio sexual que assentaria perfeitamente aos TN). Aqui, a resina extraída à Califórnia em forma de pilha de nervos – tal como moldada pelos Black Flag e pela posterior ramificação Circle Jerks - passava a ser essencial na produção da banha de cobra que lubrifica os refrães hedonísticos de “I got erection” ou “Just Flesh”. Em pleno esplendor germinal, os Turbonegro constituíam já uma ameaça amaricada para todo o rock maraquinhas . O Apolypse foi cumprido conforme as escrituras.

Turbonegro é, afinal, sinónimo da tenuidade que separa um nome de ser encarado como bestial e, no dia seguinte, como besta. Basta ter em conta o défice de interesse que separa Ass Cobra de Scandinavian Leather. Ainda assim, Apocalyspe Dudes há-de sempre prevalecer na balança discográfica como o peso que impedirá o braço de cair em definitivo sobre o extremo negativo. Qualquer que seja a apreciação face aos discos de Turbonegro, estará incompleta enquanto padecer da prova viva que representa o grandioso circo que a turma de Oslo oferece em palco. É lá que o bicho pega.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
15/12/2005