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The Poison Arrows Trailer Park EP

2004
File 13


Pertence às mais estimadas memórias de dias de verão aquele ritual do ouvido que se encosta ao búzio, para escutar ao seu interior helicoidal o ilusório som do marulhar do mar. Ainda que ludibriados pela refracção da ressonância das ondas sonoras, a miudagem dá-se por satisfeita com o livre manusear da concha, afastando-a e aproximando-a aos ouvidos conforme convenha à brincadeira. Por vezes a ignorância é mesmo uma bênção – tal como afirmava o personagem Cypher em Matrix, marimbando-se para o facto do gosto da carne que ingeria ser uma ilusão virtual ou não... Anulado por um vazio côncavo, o EP Trailer Park é comparável a um búzio grotesco ao qual, em vez do som diáfano da maré, se escuta a súplica desesperada a uma Chicago industrial – cidade cuja electrónica deve ser inspirada cautelosamente, não vá o pulmão dar-se mal com a toxicidade da coisa.

Por altura deste primeiro EP, The Poison Arrows tinham como único arqueador Justin Sinkovich – figura ilustre da cena de Chicago, onde acumulou reputação nos Atombombpocketknife e enquanto líder dos Thumbail, cujo reagrupamento em modo autónomo resultou na fundação da File 13 que lançou este EP. O protagonismo de Sinkovich abrange a fundação e monitorização do muito recomendável (mas raramente actualizado) site Epitonic.com - terreno fértil para a descoberta de novos talentos em formato mp3 gratuito. Todas estas representam posições de privilégio, que, contextualizadas, oferecem imediatamente resposta para duas questões intrigantes: o que teria levado tal nulidade a merecer lançamento noutro formato que não mp3 ou CD-R para amigos? Por que motivo os links entre bandas da Epitonic tantas vezes apontavam paras os Atombombpocketknife e Thumbnail? Acima de tudo, fica encontrada uma explicação viável para um lançamento oficial, que dificilmente o teria sido se não fosse em descomprometido regime D.Y.I.

Musicalmente falando, Trailer Park ambiciona ser encarado com uma séria emulação de ambientes rarefactos elaborados em forma compêndio de movimentações pseudo-electrónicas – compostas a partir beats do arco da velha, sintetizadores remelosos e uma vozinha tão firme quanto os primeiros passos de Julia Roberts numa praia de nudistas. Sinkovich previne-nos com um tom profético (selado com a ebulição interior dos Postal Service) para um apocalipse sedeado em Chicago, mas, no seu melhor, Trailer Park provoca o impacto do Y2K. Pior; o press release que acompanha o disco revela ostensivamente que o disco resulta de colecções de discos que ultrapassam a marca dos 4000 títulos. O ex-Guided By Voices Bob Pollard conta com uma soma à volta desse número só em discos por si assinados (incluindo os de GBV) e ainda está para chegar o dia em que venha a lançar um que seja apreciável.

Trailer Park quer forçosamente incorrer pelo culto cabalístico do ruído, mas descamba invariavelmente em redundância (Martin Rev decepa um dedo mindinho à sua reputação nos Suicide ao assinar um remix). Também a baleia deve encarar alguma dificuldade ao avaliar o impacto aos decibéis do seu cantar, na hora de celebrar o ritual nupcial. Trailer Park não está sequer preparado para ser comparativamente justaposto ao requinte da ourivesaria de ruído traficada pela File 13 (My Way My Love é um diamante a descobrir ao Japão e ao arquivo do Bodyspace). Sobra uma oportunidade desperdiçada de honrar o legado edificado por Justin Sinkovich noutros projectos e o espaço favorável a outra proposta musical bem mais capaz.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
24/11/2005


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