Os Boards of Canada ocupam um lugar quase mĂtico nas consciĂŞncias de algumas pessoas cujas preocupações ultrapassam, em muitos quilĂłmetros, o perĂmetro do seu bairro. Conhecemos a EscĂłcia dos canais, dos kilts, do calĂŁo e do Loch Ness, mas tambĂ©m dos Mogwai e dos Belle & Sebastian – esqueçam os Franz Ferdinand! (Há por estas noites de Inverno um senhor que se senta num banco de jardim da Avenida da Liberdade e toca gaita de foles... Apetece perguntar se Ă© escocĂŞs e se gosta do bife bem ou mal passado. Por detrás de cada rosto há uma histĂłria para contar e Ă© sempre tentador interagir com a fauna humana que vive sob o manto cinzento da urbe.)
NĂŁo sabemos o que levou Michael Sandison e Marcus Eoin a juntarem-se e chamarem casa Ă costa norte da EscĂłcia, uma franja de terra confinada entre o Mar do Norte e o Oceano Atlântico. Na verdade, nĂŁo se sabe muito sobre os Boards of Canda (BoC) para alĂ©m dos discos e das colaborações que vĂŁo mantendo no campo sideral das remisturas (confira-se, a propĂłsito, o brilho sujo de “Dead Dogs Two”, original dos cLOUDDEAD, revisto por Michael e Marcus. That’s fucking beautiful, lad!). Há uma espĂ©cie de lei da rolha a vigorar, um black out que leva os admiradores e as lĂnguas viperinas pelos caminhos da especulação lunática.
Passar sete anos sem editar mais do que três discos é também um bom reagente que ajuda na combustão de distorcidas visões da coisa. A proporção pode não ser comparável à taxa de reprodução de coelhos em idade adulta, mas se atentarmos no mercado extra-LP, temos uma boa meia-dúzia de estremosas edições – desde o inaugural Twoism a In a Beautiful Place out in the Country, o EP que esteve entre a edição de Music Has the Right to Children e Geogaddi (sem esquecer, claro, as inevitáveis Peel Sessions, de 1999).
Acontece que o duo escocĂŞs começou do nada absoluto, que Ă© por onde começam, com honrosas excepções, as bandas que nunca poderĂŁo ser confundidas com uma sopa expresso. Era o ano de 1996 e os embrionários BoC gravavam canções a um ritmo masturbatĂłrio quando se associaram ao selo Skam, já na altura afamado pelo vĂnculo Ă electrĂłnica e ao experimental. Seguiram-se edições menores mas os rabinhos já se voltavam para a Lua ao fazerem primeiras partes de Autechre e Plaid. Em 1998, Music Has the Right to Children veio encerrar a discussĂŁo sobre qual seria o álbum maior que conjugasse um hip-hop minimal com umas subtilezas downtempo, uns pozinhos de trip-hop e duas pitadas de dope. Tinha sido criado e estava ali. NĂŁo foi há muito tempo mas desde entĂŁo tem havido cĂłpias obtusas da fĂłrmula testada. Mas falta-lhes a minĂşcia (oh, a minĂşcia!), o jeito para a produção, para o constante alijar de velas vergadas por um vento lunar.
O travo essencialmente ambient, com ocasionais beliscões menos hip que hop, de Music... e depois de Geogaddi faria talvez prever um disco de toca e foge, de revisĂŁo da matĂ©ria dada e salto no precipĂcio que se abre quando se fala da mĂşsica da contemporaneidade. Mas nĂŁo, nĂŁo Ă© isso que ouvimos neste The Campfire Headphase. Aquilo se ouve Ă© atĂ© um nadinha obsceno: ouvem-se, aqui e ali, guitarras desfraldadas, sem make-up tecnolĂłgico. Antes de gritarem “vendidos”, tentem encontrar um padrĂŁo no percurso dos BoC. Pois, Ă© difĂcil. Agora tentem nĂŁo manter a boca aberta enquanto ouvem “Chromakey Dreamcoat”, um registo prĂłximo do chill-out tardio, já quando a manhĂŁ espreita, seguido de curtĂssimos samples do que parece ser uma televisĂŁo, mais lá para o fim.
É a isto que deve soar a entrada no cĂ©rebro de Kevin Shields: uma base instrumental sublime e limpa e umas migalhas de voz manipulada para nĂŁo se ficar a conhecer o emissor. E o rigor do sample, sempre oportuno, seja a chuva no inĂcio de “Satellite Anthem Icarus”, o choro de uma criança ou as programações de uma idade prĂ©-cibernĂ©tica em “’84 Pontiac Dream” e “Oscar See Through Red Eye”. ”Soft like there’s silk everywhere”. Isso. Ou mĂşsica de elevador numa estação espacial, aumentada por um glitch soltinho como arroz malandro (especialmente em “Peacock Tail”). The Campfire Headphase Ă© uma escultura de gelo ao detalhe com ligeira inflexĂŁo na procura da melodia. É que os BoC sĂŁo tudo menos orelhudos e isso nem sequer interessa aqui.
Com Ăłbvias diferenças (atĂ©, ou sobretudo, estilĂsticas), mas de certa forma nos BoC podemos ver os Kraftwerk da nova geração. NĂŁo deixem de mostrar este disco aos vossos filhos quando eles buscarem referĂŞncias na cultura pop da altura ou no formato para que tiver evoluĂdo o telelixo. Passados alguns anos, eles saberĂŁo como agradecer.