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Department of Eagles The Cold Nose

2005
Melodic


Entra em cena um pistoleiro andrajoso e atabalhoado com a colecção de discos que transporta em cima da corcunda. Traz um sorriso sarcástico nos lábios e seis balas de borracha na pistola. Saca de um press release ao bolso de trás e, à medida que pronuncia os nomes, vai disparando na direcção dos constantes da lista negra. “DJ Shadow”. Bang! “The Pixies”. Bang, bang, bang, bang! De uma só rajada:”Fourtetkid606manitoba”. Bang, bang, bang. Ao atingirem as vítimas, as balas provocam apenas cócegas e a tensão derrete-se assim que Kim Deal convida o pistoleiro bicéfalo para uma cerveja. Entretanto, as crianças sardentas, que observavam a cena a partir do exterior, desistem instantaneamente de quaisquer aspirações académicas e passam a sonhar em ser tão ininteligivelmente eclécticas quanto a rebeldia permite. Abandona o lar. A licenciatura em “Faça-se você mesmo incatalogável” passou a servir de alternativa à vontade artística de quem não tinha média suficiente para entrar no curso mais cotado pela Deco Proteste. Sê fixe, o curso que se lixe.

Parece ser esse o apelo da dupla Department of Eagles, que une num mesmo ninho Daniel Rossen (que reclama a ressurreição dos indie kids na voz e guitarra) e Fred Nicolaus (que jura fidelidade ao lo-fi na forma como manipula as batidas e samples). Sediados em Brooklyn, Nova Iorque – cada vez mais epicentro de um fervor criativo ilimitado –, o Department of Eagles aparenta estar realmente empenhado em comprovar que a vida é plena de possibilidades. Afinal, arrisca-se a um degustar previsível o cone de baunilha que não conhecer mais que dois sabores à variedade exposta nas melhores gelatarias. Este suporta alguém que sonha em ser Stephen Malkmus e um cabaz tão abrangente quanto uma antologia da Ninja Tune.

The Cold Nose - reeditado agora pela Melodic - surpreende pela forma absolutamente descomplexada com que inala gases a todos os géneros possíveis de comportar em 40 minutos. Estamos perante um tapete voador tecido a partir de retalhos (o que não é de estranhar a um disco mantido em laboratório durante três anos). Num só mesmo trajecto derivativo, sobrevoa o magnetismo épico conferido por Dan “The Automator” ao seu projecto Deltron 3030, os Buzzcocks adaptados a um software de topo de gama, o hip-hop aparvalhado dos Puppetmastaz e um cameo do realizador Wes Anderson (também ele tão habituado a universos excêntricos onde tudo parece desconexo, mas que surpreendentemente resultam). Pelo meio, uma passagem descontraidamente chill-out pelo escritório de Noam Chomsky no MIT de Boston. Confuso, não? O direito a ser inexplicável não será um exclusivo das intrigas anexas aos filmes que a TVI emite nas tardes de domingo.

O primeiro disco do Deparment of Eagles pode até comprovar quão glorioso pode ser o percurso descrito um tiro saído pela culatra, mas, por consequência, também não oferece grandes probabilidades a uma sequela. Houvesse entre Odelay e Guero uma ponte tosca - desenhada por alguém disposto a atraiçoar Beck por um punhado de dólares -, e faria todo o sentido que The Cold Nose fosse o nome escolhido para a construção. Tenho a certeza de que vigilante e firme na portagem, lá estaria o tal pistoleiro bicéfalo que vai baleando os passageiros que pareçam atraentes à sua síntese. A ponte é uma passagem para a outra margem. Esta conduz a uma central de reciclagem.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
14/11/2005