Agora que a Internet proibiu um meio limitado de cultivar caprichosamente os seus segredos, sucedem-se situações imediatas em tudo semelhantes à seguinte: Cidade de Deus dá a conhecer ao mundo Mané Galinha e, antes que o berimbau se atreva a uma primeira nota, já algum japonês de gosto exótico ensaia timidamente o sotaque carioca à frente de um laptop Toshiba. Sejamos francos: muito deve a internacionalização explosiva de Seu Jorge ao realizador Fernando Meirelles e à bomba de cinema latino que realizou. Some-se a isso uma enorme dose de talento, um songwritting à flor da pele e as músicas de David Bowie cantadas em português em Um Peixe Fora de Ãgua, e o culto em torno de Seu Jorge torna-se tão robusto quanto imparável. Ainda assim e antes da travessia do Atlântico, Jorge Mário da Silva percorreu os anos de formação ao lado da banda Farofa Carioca e por lá foi alcançando mestria nos géneros que dele fazem um embaixador musical canarinho: samba, funk carioca, choro actualizado. Esses foram anos suficientes para que uma facção significante e incorruptÃvel do seu paÃs natal “cansasse†de Seu Jorge. Assim seja. A julgar pelo primeiro álbum a ter direito a distribuição mundial – Cru - a Europa tem mais que muitas razões para estimar e acolher Seu Jorge.
Apesar de ter aproveitado o balanço oferecido pelas participações em filmes abundantemente aclamados, o alinhamento oportuno de ocasiões favoráveis ao sucesso de Seu Jorge não seria contudo suficiente para manter activa a parcial euforia que o músico faz despoletar por onde passa. Tal como faz antever o seu tÃtulo, Cru aparenta uma carnalidade que só podia partir de alguém que sabe o que é encostar o pé calejado ao piso rude do morro. O samba só o é quando floresce radiante e quando faz - quem com ele contacta - sobrevoar acima da favela condenada aos reveses da sua disposição vertical (onde “o de cima sobe, o de baixo desceâ€, como cantava o eterno Chico Science).
Cru é simultaneamente concreto no seu desfile de contos urbanos (“São Gonça†descreve uma ruptura sentimental com a crueza de um documentário) e propÃcio a providenciar escape a quem desespera por finalmente encontrar as maravilhas ao Rio de Janeiro, tal como promete o emblemático sambinha. Cru é, aliás, um álbum meditativo quanto à complexidade do tempo. Seja no delicado encanto de Bola de Meia (lição de mestre na arte de “como tornar musical a voz sem ter de cantarâ€) a apelar ao tempo como curativo para a cicatriz amorosa ou no condensado histórico social de “Eu sou Favelaâ€. Aquela noção pessimista do tempo que tudo destrói tem no carisma de Seu Jorge um temÃvel opositor, tal é a credibilidade com que insinua que o samba a tudo subsiste.
A globalização é cada vez mais uma via-rápida com dois sentidos. Há uns anos, Michael Jackson demonstrava o seu zelo pela segurança das crianças da favela e optava pela problemática zona urbana como locação para o teledisco de “They Don’t Really Care About Us†(afirmação que se viria revelar errada algum tempo depois, quando o mundo não tirava os olhos de Jacko). Actualmente, o “hype†faz escala nas metrópoles brasileiras: a princesa revolucionária M.I.A. faz da sua paixão pelo funk de favela uma bandeira e os Arcade Fire há bem pouco tempo ensaiaram um tropicalismo fúnebre ao arriscarem ao vivo uma versão do clássico “Brazilâ€. Seu Jorge serve como representativa moeda de troca por parte do paÃs da Ordem e Progresso. Cru é ilustre e substancial no seu veraneio pelos géneros tornados especiarias exportáveis. Surpreendente é o facto de Seu Jorge cumprir essa rota sem nunca perder o norte à genuinidade e convicto de que conferir uma alma ambiciosa à sua jóia não faz do ourives um estrangeirado mercenário.