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My Way My Love Hypnotic Suggestion: 01

2005
File 13


Não hei-de conhecer um sono descansado enquanto não vir resolvido este mal-entendido que desde há dias encurta a distância entre a minha almofada e os soporíferos engavetados na cozinha. Como pode a designação “pós-punk†servir de etiqueta ao som praticado por pólos tão distantes quanto os Franz Ferdinand e estes My Way My Love? Só mesmo nas mãos de santa tolerância, que faça desse termo pau para toda a obra. Não há lógica alguma num saco que faça coabitar o oportunismo fardado dos Franz Ferdinand com o fardo inoportuno representado na toxicidade descarnada que os My Way My Love colocam numa balança pós-punk, que convém límpida e desocupada a quem tem a ganhar com a linhagem de Kaiser Chiefs, The Killers e outras marcas de leite condensado. A gravata presa ao colarinho desses soldadinhos de chumbo corresponde a uma forca bem apertada no pescoço das três bestinhas que formam os My May My Love (quando devia ser o inverso a acontecer). Alguém terá de cumprir a vontade que Alex Kapranos reclama no mais popular dos seus refrões: levem-no a sair do género que o adoptou por equívoco.

Permitam todo espaço possível à cavalgada sónica deste power-trio nipónico, pois basta meia hora à ocupação territorial desta mini-armada. Trinta minutos esses que são repletos de moldes rock preenchidos de forma deliberadamente esquizofrénica, grooves libidinosos (prova que nem todos já esqueceram os feitos de Scott McLoud nos Girls Versus Boys e New Wet Kojak), dedos sobre o gatilho rítmico que lança nações inteiras em paranóia, sirenes alarmantes (que, em alternância com a linha de baixo de “Captainâ€, parecem anunciar o regresso do bombardeiro Enola Gay) e tudo mais que o filtro ocidental consegue captar à carnificina sonora conduzida pelos My May My Love. O resto acaba perdido em tradução.

Tal como os compatriotas Mad Capsule Markets, o power-trio liderado por Yukio Murata trata Hiroshima como uma paixão catártica. Hypnotic Suggestion: 01 - mais pós-nuclear do que pós-punk - é um disco assombrado pela ideia de que, mais tarde ou mais cedo, será necessário começar tudo de novo. “Super Fresh!†antecipa-se em relação ao inevitável: destrói a convencionalidade num tempo recorde de um minuto e vinte e um, para, de raiz, ensaiar a sua própria utopia alimentada a ruído, suor e resíduos extraídos ao M dos arcos dourados. Hypnotic mutila-se a si mesmo nem que seja pela esperança de que alguém possa aproveitar o seu cadáver para base de uma existência robótica mais resistente e estável. Há uma urgência em Hypnotic Suggestion: 01 que parece convidar a uma autodestruição voluntária que anteceda à que possa vir a ser imposta por terceiros. O melhor será mesmo contar os dias com tracejados a carvão sobre uma parede onde conste também o número de quecas dadas pelo par condenado (recomenda-se a afrodisíaca “Sound of Gold†para o efeito). Nunca o fim do mundo - tal como o conhecemos da cultura manga – foi tão sexy.

Algo de irremediavelmente perturbante lateja à superfície críptica de Hypnotic Suggestion: 01, como se este fosse um atroz filme snuff emitido em canal asiático velado por sinal codificado. Também Linda Lovelace protagonizou o filme que a tornou lenda subjugada à ameaça de uma bala. Como é sabido, Garganta Funda terá sido o filme com direito a maior número de sequelas indirectas e progénitos bastardos. O mesmo se espera de um marco menor como Hyptotic Suggestion:01.

E esta noite pode até ser que o subconsciente me venha a presentear com um pesadelo apocalíptico (pior do que aquele a que assisto diariamente no jornal das oito). Contudo, adormeço na certeza de que nem o pior cenário possível pode sequer estar perto de algo tão deprimente como a visão de três japoneses raivosos tolhidos em fatos de gala e prontos a desintegrarem-se assim que for carimbada a acção de despejo que os pontapeia do ilusório pedestal.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
23/10/2005