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Flanger Spirituals

2005
Nonplace / Flur


Atom Heart Ă© a alma criadora da personagem Señor Coconut, o sedutor sul-americano que com ironia pĂłs-moderna reformula cançÔes pop carregadas de azeite em divertidas versĂ”es latinas, irresistĂ­veis de cantarolar sem complexos. Burnt Friedman Ă© o cĂ©rebro que conduz os Nu-Dub Players, o projecto que editou pela ~scape um intemporal disco de dub adulterado - Just Landed (1998). Mas estes sĂŁo apenas dois exemplos da enorme capacidade destes dois prolĂ­ficos mĂșsicos. Juntos, Atom e Friedman sĂŁo Flanger, um projecto que começou a trabalhar em 1999 e que em 2005 prossegue actividades indiferente a modas.

Este Ă© o quarto disco deste duo, depois de Templates (1999), Midnight Sound (2000) e Outer Space / Inner Space (2001). Na altura da edição destes discos os ventos corriam a favor da dupla, as electrĂłnicas estavam na moda. Ao segundo disco incluĂ­ram uma versĂŁo do tema “So What” - a abertura de Kind of Blue (Miles Davis) - um statement que lhes atestava a paternidade jazzĂ­stica. Entretanto a parceria manteve-se, trabalhando na evolução do registo e agora chega-nos mais um tomo da dupla, quatro anos depois do Ășltimo lançamento.

A mĂșsica da dupla Atom/Friedman balança entre dois pĂłlos: por um lado, a atracção pelo jazz clĂĄssico, melĂłdico, antigo e cheio de swing; por outro lado hĂĄ a consciĂȘncia do tempo presente e da envolvĂȘncia electrĂłnica. E, resultado do cruzamento destes universos, nasce uma mĂșsica onde o jazz mais quente e doce se funde com a frieza da produção tĂ­pica IDM (intelligent dance music). HĂĄ uma atmosfera encantadora de melodias jazzĂ­sticas roubadas a outro tempo (50%), efeitos e manipulaçÔes electrĂłnicas (40%) e ainda uma dose constante de originalidade (20%) – e quem disse que a (boa) musica era uma ciĂȘncia exacta?

E as mĂșsicas? “Crime in the Pale Moonlight” Ă© um single Ăłbvio, poppy q.b., assente numa vocalização jazz Ă  lĂĄ Cincotti/Cullum, com personalidade (a voz Ă© do australiano Richard Pike). “How Long is the Wrong Way?” segue nas pegadas do tema anterior e reforça o poder do inĂ­cio do disco. “Music Is Our Secret Code”, a faixa 5, tem uma base de guitarra antiga que viaja atĂ© Ă s barricadas da resistĂȘncia francesa – Django Reinhardt Ă© a lembrança imediata e a sĂ©rie AllĂŽ-AllĂŽ tambĂ©m nĂŁo anda longe. “Peninsula” Ă© guitarra e clarinete e quase que emula “Blue Moon” (ou “Tony Silva”, na versĂŁo portuguesa). O disco Ă© todo construĂ­do na alternĂąncia entre os instrumentais e os temas cantados e consegue uma estĂĄvel consistĂȘncia. Ao longo do ĂĄlbum alguns dos momentos mais mornos sĂŁo da responsabilidade de Hayden Chisholm, que toca saxofone e clarinete. Chamar a esta mĂșsica “espirituais” Ă© uma apropriação exagerada, o gospel mora longe, no limite o que temos aqui Ă© jazz falsificado e desvirtuado - mas com aquela coisa (o swing) que o legitima.

Como se Django e Sidney Bechet se defrontassem num duelo de Pró-Evolution Soccer 5 em PSP, assim é este disco. Com sabor a antigo e com irrefutåveis marcas do tempo presente, sente-se 2005 pelos poros mas a agulha estå apontada para o passado. De Paris-1929 até Köln-2005, com passagem por New Orleans e Santiago do Chile, viagem completa.


Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
27/09/2005