Tourada Ă© crime. Passa tambĂ©m - a partir de Dignity and Shame - a servir de mote temático a um crime passional cometido por Eric Bachmann, a omnipotente mĂŁo compositora que levou os Crooked Fingers a agarrarem a tauromaquia pelos cornos neste disco. O outrora lĂder dos Archers of Loaf deixou-se contagiar pela febre de arena e empenhou-se na composição de um álbum conceptual que servisse de memorial Ă lenda do toureiro espanhol, Manolete. Se excluirmos o diferendo em termos de sugestões sexuais, as pretensões de Eric Bachmann nĂŁo divergem muito das que levaram Madonna – empenhada em mostrar ao mundo que podia ser Evita PerĂłn - a convidar o matador Emilio Muñoz para contracenar consigo no teledisco de Take a Bow. Ambos sublinham os traços que tornam mĂtica a figura do toureiro: a postura erecta mantida de bandarilhas em punho ou nos braços das divas de alta sociedade, a aura de quem vive os seus dilemas avaliados por aplausos, a virilidade do homem que domina a besta animal (ou o contrário, quando a coisa nĂŁo corre bem). É certo que tudo isso resultava Ă s maravilhas em função de uma Madonna em amadurecimento pĂłs-clĂmax-Erotica. Como requintado invĂłlucro para Dignity and Shame, servirá apenas para despistas a fome a sedentos de canções que sobrevivam a mais que um punhado de escutas.
Dignity and Shame Ă© tambĂ©m um disco onde a masculinidade Ă© chamada a depor. Talvez porque cada garrafa de tequilla pode tambĂ©m ser um ponto ser retorno, o toureiro Manolete encontrou no MĂ©xico a casa de partida ideal para rumar em direcção Ă decadĂŞncia. Pela mesma tabela, os Crooked Fingers aproveitam o disfarce do sombrero para camuflarem as emoções de uma paixĂŁo intensa, a angĂşstia imposta pela distância (que o tema-tĂtulo trata de adensar) e o fatalismo de quem seduz a morte como ganha pĂŁo. “Islero” – nome do touro que ceifou a vida a Manolete – traz Ă baila esse fatalismo. Muito se aproxima a guitarra dedilhada na faixa inicial daquela que conhecemos a Gustavo Santaolalla, mĂşsico que dava alma a Amor CĂŁo com os seus temas e interlĂşdios. TambĂ©m nesse brilharete do cinema mexicano existia um protagonista – El Chivo – perdido numa vida de vagabundo que o separava da dignidade. Dignity and Shame será apenas a berlinda de sentimentos em que Bachmann vestiu a pele mĂtica de Manolete – ou de El Chivo, se assim preferirem as fĂŁs de Garcia Bernal – como forma fantasiosa de enfrentar fantasmas e vivĂŞncias por digerir que sĂŁo suas mais do que dos personagens.
Eric Bachmann encontra-se em transe latino, como se lhe tivesse sido delegada (pelo diabo de saias) a tarefa de condensar Los “La Bamba” Lobos e outros dignos representantes da bandeira Tex-Mex numa releitura americanizada da vida loca levada pelo toureiro Manolete. Todos sabemos dos resultados obtidos no cinema com os remakes de comédias francesas e filmes de terror asiáticos. Mantém-se o conceito e derrama-se a essência na altura em que se descobrem os primeiros sinais de plasticidade aos intérpretes. “Twilight Creeps”, por exemplo, resulta enquanto dueto que une as vozes de Bachmann e Lara Meyerrakten numa ternura quase boémia, mas não escapa a parecer acessória num disco cujos excessos nunca chegam a ser devidamente compensados pelo talento de Bachmann na execução da sua folk assombrada. Pois se ocasião reclamava por arranjos micro-orquestrais (e aà estamos bem servidos), teria de ser a veia clássica a assegurar a manutenção disso mesmo. Dignity and Shame acusa desgaste cedo demais.
Num plano imaginário, Dignity and Shame podia ser o disco gravado pelos Calexico no dia em que trocassem a Tucson natal pelo Nebraska de Bruce Springsteen. Recomenda-se, portanto, a todos os que não torcerem o nariz à miscelânea imposta por esse cruzamento de territórios. Este álbum morre na praia, dignificado pela ambição do conceito e envergonhado por ter não ter obtido a melhor execução para o mesmo.