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Baikonour For the Lonely Hearts of the Cosmos

2005
Melodic


No espaço, ninguém escuta a estranheza de um miar. Não terá sido fácil para o público assíduo de Sabrina, a Bruxa Adolescente ultrapassar o trauma provocado pela exposição ao ensombrear de alma a cargo da mais sinistra das figuras televisivas possuidoras de cauda, o temível gato Salem Saberhagen. O casamento entre felinos que figura no livrete de Mellon Collie and the Infinite Sadness (o duplo dos Smashing Pumpkins) parece estar condenado ao adultério. Os gatos são animais dados a um travestismo natural (um pouco como os pássaros apadrinhados por Lou Reed). For the Lonely Hearts of the Cosmos é um frenesim de space rock disfarçado de diário de bordo redigido por Paco (o primeiro gato a ser lançado em órbita), um estimulante jogo de sedução entre guitarras com cio e uma Via Láctea fecunda. Entrámos em contagem decrescente.

Os primeiros EPs - lançados pela britânica Melodic – valeram a Jean-Emmanuel Krieger (o signatário de missões espaciais sob o pseudónimo Baikonour) comparações aos conterrâneos Air (também eles perdidos desde um safari à Lua), mesmo que apenas a naturalidade (Versalhes) e o fascínio sideral unissem os dois projectos. O caso muda se cruzarmos os obsessivos Man or Astro-Man com os Air. A aparência sonora de tal mutação poderá então estabelecer uma ideia vaga do que Baikonour tem para oferecer com o seu debute. Essencialmente, a oportunidade de assistir ao lançamento de um objecto de difícil catalogação em órbita de recursos inventivos. Baikonour recorre à celeridade dos teclados (manipulados a um tom rétro) na hora de atingir a velocidade da luz e não hesita em desintegrar meteoritos com esparsos feixes de electrónica. Apenas as guitarras não abandonam os comandos de bordo. Lá se mantêm à descoberta da fórmula que tornou os Cocteau Twins e My Blood Valentine (preferências máximas de Jean-Emmanuel) em sagrados embaixadores da guitarra como instrumento de possibilidades infinitas.

À falta de melhores termos de comparação, prossegue a chuva de estrelas cadentes, que é como quem diz: “bombardeamento de nomesâ€. Por ser tão difícil antever-lhe coordenadas, o cosmos percorrido por Baikonour encontra-se próximo daquele que os Deerhoof recentemente pintaram de verde. Como coordenadas possui apenas a indefinição dos Dymaxion (para quando a confirmação?), uma descomplexada forma de arriscar, semelhante à dos Wire, o delírio narcolibidinoso dos Trans Am. O fortíssimo “Coltan Anyone?†faz de Baikonour uma espécie de Doors a go go, o irmão gémeo dos nossos Ölga, que um dia decidiu ser astronauta. For the Lonely Hearts of the Cosmos é uma atracção preservada em secretismo numa área por descobrir, à Disneyland. Nem sequer é necessário perder tempo na fila.

O gato flutuante tem as orelhas pontiagudas como as de Spock. Usa-as como receptores de toda uma imensurável herança sci-fi dispersa por discos com o nariz apontado para a estratosfera. A certa altura de “Bugman†(a segunda faixa de 13), Damon Albarn aproveita o slogan a Sun Ra e faz planar a sua voz sobre as palavras: â€Space is the placeâ€. Presumo que se esteja a referir ao espaço como lugar das filhoses, a que o gato finalmente foi, e logo à primeira.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
22/08/2005