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Orenda Fink Invisible Ones

2005
Saddle Creek / Ananana


Separam-se as comadres, salientam-se as verdades. Num ano que já testemunhou as inesperadas reuniões dos Slint ou Pink Floyd, as Azure Ray optaram pela resolução inversa e estabeleceram amigavelmente um afastamento que se crê temporário. Para gáudio dos separatistas, aí estão 11:11 da siamesa Maria Taylor (metade das Azure Ray) e este Invisible Ones a cargo de Orenda Fink (a outra metade). Chegada a hora de encontrar justificações para o corte do cordão umbilical, a variedade de motivos é proporcional à folga que se dê à rédea da conspiração: estas serão demandas distintas em busca de um renovado fôlego, demonstrações de auto-suficiência sem marcas de egocentrismo, manobras de diversão para despistar as expectativas geradas pelo monumental Hold On Love. É bem provável que Oliver Stone tenha uma opinião completamente diferente de todas as sugeridas. Costuma ser esse o dom que lhe serve de ganha-pão. Por sua vez, Orenda Fink explora na sua elegia às entidades invisíveis o dom de conter em disco uma experiência espiritual marcante, sem nunca descambar no vazio perceptível na voz irritante de Alanis Morrisette enquanto agradecia à Índia o facto de ter abraçado uma nova dieta. A força do exotismo molda destinos.

Pois é. Orenda Fink encontrou o amor da sua vida em Todd Baechle (agora Todd Fink) dos parceiros de editora Faint, e, com isso, evaporou-se a tendência natural para a escrita de canções em torno de desgostos sentimentais (especialidade tão apreciada às Azure Ray). Juntos, anteciparam a lua-de-mel e rumaram ao Haiti na senda de uma maior compreensão do misticismo associado à cultura do país. Uma espécie de diário de viagem (que pode ser lido em http://www.mediummagazine.com/articleHaiti.asp) mantido por Orenda dá conta de experiências intensas, medos ultrapassados no limiar, noites em que o incandescente serve de escassa luminosidade ao roteiro do futuro casal Fink. Orenda procurou no Haiti libertar-se de agoiros e fantasmas absorvidos no passado. Afinal, as Azure Ray chegaram em tempos a abrir concertos para Moby. Torna-se compreensível a necessidade de purificação manifestada por Orenda Fink, senhora de uma beleza só mesmo comparável à de Kirstie Alley nos tempos da série Norte e Sul. A inquebrável simpatia de Invisible Ones livra a sua criadora de pecados.

O lançamento veraneante da Saddle Creek apresenta-se solidamente conceptual e sobejamente curioso para atrair até si os aficionados do charme Azure Ray. Através de um ritual de hipnose invisível, Orenda Fink convida os habituais confidentes de turbulências passionais a acompanharem-na agora numa caminhada sobre brasas. Não convém minimamente a Invisible Ones uma imposição ditatorial. Antes insinua-se como verdejante trilho a percorrer. E quem conhece Orenda dos discos de Azure Ray, sabe dos seus dotes na arte da jardinagem (o auxílio do Magnolia String Quartet vem, por isso, a calhar). “Bloodline” é orquídea selvagem dividida entre períodos iguais de exposição à luminosidade da voz esperançosa de Orenda e sombra de uma linha de baixo atalaidora. “Les Invisibles”, “No Evolution” e “Animal” são plantas raras que, juntas na mesma mistura, compõem o bálsamo curativo que liberta a vítima do ocupante maligno. Dave Sitek (gentilmente cedido pelos TV on the Radio) trata de refrescar a vegetação com a discreta pulverização de loops e texturas adequados à toada ritualista deste disco, que pouco ou nada terá em comum com o desencanto boémio dos TV on the Radio. Fica composto o ramalhete e cumprido o exorcismo.

Dita a crença vudu que os espíritos não devem ser entendidos como presenças “boas” ou “más”, mas sim “quentes” ou “frias”. Uma avaliação térmica impõe-se ao julgamento fácil. Pela mesma tabela, parece inadequado arrumar Invisible Ones com um ou dois adjectivos. O seu valor documental iliba-o de uma classificação númerica. O disco vale, sobretudo, por revelar quão proveitosa pode ser uma iniciativa solitária. A loba Azure Ray dispõe de leite suficiente para amamentar duas crias em crescimento paralelo.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
19/08/2005