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Esmerine Aurora

2005
Madrona


Quando se pensa em projectos ligados ao selo Constellation ou em projectos derivados da editora canadiana ou das bandas que representa, as primeiras imagens que invadem a mente serão certamente aquelas ligadas à taciturnidade, ao negrume, à escuridão ou, no máximo, à esperança ténue. Quer seja nas visões quase apocalípticas trazidas pelos Godspeed ! You ! Black ! Emperor! (só para que este texto não perca a validade dentro de alguns anos), nas viagens de resistência e de gume da navalha criadas pelos A Silver Mt. Zion em qualquer uma das suas encarnações ou mudanças de nome ou noutros projectos. Ora Freud, em 1919, encontrou uma forma de dizer a estranheza que se torna inquietante: das unheimliche. E unheimliche é a sensação de desamparo, angustia, desassossego que apanha o individuo diante o inexplicável e divide-se em duas áreas de acção: aquela que é própria da vida e a que é própria da literatura. O unheimliche é ter crença no animismo, percepcionar o mundo partindo de desígnios transcendentais.

Partindo dessa ideia de intercepção entre o transcendental, a estranheza e o negrume, torna-se por demais evidente que há certos e determinados discos misteriosamente favorecidos pela noite e pelo frio, pela reclusão. E Aurora é um deles. Depois de If Only a Sweet Surrender to the Nights to Come be True editado em 2003, o duo Bruce Cawdron e Beckie Foon (conhecido pelo trabalho com os Godspeed You! Black Emperor, Set Fire to Flames, Triple-Burner, Fifths of Seven, e os – até ao momento - Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra & Tra-La-La Band) traçam a segunda viagem inquietante pelos reinos da música instrumental de cadência sombria utilizando para isso instrumentos como o violoncelo, glockenspiel e vários elementos de percussão. Mas Bruce Cawdron e Beckie Foon não estão sozinhos. Mike Moya (Hrsta), Harris Newman (Hrsta), Jessie Carrot (dos Jackie-O Motherfucker) e Howard Bilerman também contribuem ocasionalmente neste Aurora com guitarra eléctrica, baixo e percussão.

E logo a abrir temos “Quelques Mots Pleins d'Ombre†que, depois do caminho desbravado por instrumentos de cordas (que por vezes se entrecruzam delicadamente) e mais tarde por um piano, se encaminha para um estado de catarse similar a “Sit In the Middle of Three Galloping Dogsâ€, o segundo tema do disco de estreia dos A Silver Mt. Zion, especialmente no que diz respeito à percussão e explosão final. Afinal de contas, os ensinamentos passam de mão em mão e a tradição não é coisa de se mande para trás das costas. Mas curiosamente, a partir daqui, Aurora entra nos domínios da mansidão e só no final do disco se volta a manifestar da forma como faz no final da faixa de abertura. “Histories Repeating As One Thousand Hearts Mendâ€, o tema mais longo do disco é uma viagem maioritariamente planante posta em marcha por um fio de cordas e instrumentos de percussão que transportam os Esmerine para uma marcha algures na Ãfrica ou na Ãsia. Em “Mados†há um digladiar de cordas, e “Why She Swallows Bullets and Stones†(a escola dos títulos de canções fez bem a quem agora assina como Esmerine) é um delicadíssimo respiro delineado por cordas e piano que recolhe, aqui e ali, alguns fragmentos de ruído e, consequentemente, inquietude. “Le Rire de l'ange†fecha o disco com mais um demoníaco combate entre cordas e percussão (os dois elementos-chave aqui presentes neste registo). Embora não seja nada de revolucionário tendo em conta o trabalho passado de Bruce Cawdron e Beckie Foon e dos seus pares, Aurora é o desfilar de seis temas obviamente e quase obrigatoriamente cinemáticos (e não raras vezes belíssimos) quase sempre imersos na escuridão, na tal desolação. Cenário que, ao olhar para os dias de hoje, faz - e provavelmente fará nos próximos tempos - todo e especial sentido.


André Gomes
andregomes@bodyspace.net
10/08/2005