George Lucas sabe-o certamente. Quando Ă© dado por terminado o perĂodo de filmagens de uma trilogia (envolva hobbits ou actores sem outro talento que nĂŁo o posar de Ăłculos escuros), a preocupação passa para a sala de montagem. É por lá que se vĂŁo acumulando – em pilha sujeita ao esquecimento – os trechos excedentes, matĂ©ria, que por uma ou outra razĂŁo, surge como inapropriada Ă idealização do conceito. AtĂ© porque o mundo passa bem sem demonstrações de afecto entre wookies. Contudo, na hora da rentabilização pĂłstuma, recaem quase sempre sobre essas “impurezas” as garras da reciclagem. Nada a temer neste caso, pois I Thought I Was Over That – Rare, Remixed and B-Sides alarga a infalibilidade dos trĂŞs discos conhecidos ao que deve ser tido apenas como perifĂ©rico, mas que, mesmo assim, conhece aqui enquadramento lĂłgico propĂcio ao avolumar de interesse. A adequada qualidade do relicário de pontas-soltas permite aos Lali Puna aspirarem a dias ainda melhores sem verterem lágrimas sobre o leite derramado.
AlĂ©m de servir como recipiente ao que escapou Ă convocatĂłria dos álbuns, I Thought I Was Over That serve tambĂ©m de montra a remisturas de temas alheios em nome prĂłprio e, inversamente, Ă prata da casa cinzelada pela mĂŁo de ourives externos (dispostos a demonstrações de simpatia e agradecimentos simbĂłlicos). AlĂ©m disso e mediante a generosa variedade do registo, Ă© possĂvel descobrir - entre os ramos cortados ao Bonsai – facetas que desconhecĂamos aos Lali Puna e outras tantas recĂ©m-formadas que já produzem saliva. Apesar de concebido como complemento paralelo, I Thought I Was Over That Ă© muito mais que um contentor de derivados indesejáveis. Este podia atĂ© ser o quarto disco dos Lali Puna, pela forma como revela a transacção acima da mera retrospectiva.
Um digno passado persegue os Lali Puna. Para mais, funciona nos dois sentidos inversos. O primeiro dos dois discos expõe material voluntário e parte com considerável vantagem (no que a revelações diz respeito) sobre o seu reverso dedicado exclusivamente a remisturas elaboradas por outrem (excepto uma das faixas). NĂŁo será necessário um tremendo esforço para descobrir pepitas de outro entre a peneira. Os Slowdive – geniais ensaĂstas da vertigem em forma de pĂłs-rock - conhecem homenagem Ă sua altura na eternidade condensada em “40 Days” – extraĂdo ao disco de tributo Blue Skied An’Clear. A coisa melhora e a pulsação dispara com um “Clear Cut” a dar por bem gasto o tempo partilhado com Tim Simenon (o nome que a influente máscara Bomb the Bass oculta) na concepção do EP com o mesmo nome. “Clear Cut” pertence em qualquer antologia de mĂşsica dita urbana e deixa a ideia de que os Coldfinger (sem desfazer) teriam muito a aprender com os seus congĂ©neres germânicos. Produzido exclusivamente para a ocasiĂŁo, “Past Machine” parece ter um pĂ© assente sobre as melhores referĂŞncias obtidas junto dos Joy Division e Chameleons e outro convicto em dar seguimento Ă mutação indie encetada com o Ăşltimo Faking The Books. Arrebata a coroa de melhor faixa e deixa-nos a todos pelo anzol.
Igualmente impressionante é dar conta de que o arrebanhar de remisturas não resulta em catástrofe (sim, ainda não recuperei de Telegram), apesar de também não representar muito mais que facultativa oportunidade de tomar contacto com reinterpretações do que por si já é suficientemente esclarecedor. Jimmy Tamborello (metade dos Postal Service aqui disfarçado pelas possibilidades oferecidas pela designação Dntel) aplica a sua sensibilidade a um “Faking the Books”, que, bem vistas as coisas, até podia ter sido originalmente composto pelo esteta que agora o simplifica. O canadiano Sixtoo (conhecedor de um fervoroso devoto entre os nossos redactores) pretere a sua identidade em prol de uma segunda vida para “Small Things”. Os Two Lone Swordsmen (dois a mais, digo eu) podiam ter deixado a esgrima em casa e poupado o clássico “nin-com-pop” de um embaraço desnecessário. Surpreendentemente ou nem por isso, é com uma remistura dub de “Left Handed” – a cargo dos próprios Lali Puna – que o segundo disco recolhe a maior fatia de mérito. Lali Puna ao quadrado resulta.
Faltou Ă compilação uma faixa cantada no irresistĂvel portuguĂŞs dadaĂsta de Valerie Trebeljahr. E aqui intervĂ©m a saudade egoĂsta de quem preserva "Rapariga da Banheira" ou "Contratempo" firmes sobre o sagrado pedestal reservado Ă melhor electrĂłnica de sotaque lusitano (a vocalista Valerie viveu em Portugal durante dez anos). No entanto, obriga o bom-senso a revelar de que nada do que aqui consta desilude os rendidos ao charme cosmopolita dos Lali Puna. Arrisca-se atĂ© o lançamento a converter mais uns quantos a esse estranho culto da serenidade de olhos assentes na linha do horizonte que separa a esperança atlântica da frieza germânica (convertida pelos Lali em coolness). Hás-de me dizer onde tens o teu caixote do lixo.