Às vezes acontece. Não se está a passar nada e, de repente, apaixonamo-nos. Não, não é por aquela rapariga que vimos no metro no outro dia, com um bocadinho da cuequinha vermelha à mostra e que parece ter-nos feito um olhar (não fez, obviamente). Nem sequer é por uma pessoa. É por um momento, um momento musical, gravado ou não, algo transcendental. Algo que nos transporta para outro sÃtio, outro mundo e essas tretas todas.
O momento é quase no fim de "Two for Joy", das Electrelane, quando os "ooooohs" se transformam em "aaaaaahs" e todos os elementos se juntam numa fusão perfeita. Elementos básicos, que se vão repetindo, vão aumentando, acelerando, e começam a fazer (muito) sentido. O nosso coração acelera e a respiração torna-se mais difÃcil, há algo ali de muito especial, algo praticamente indescritÃvel. É o momento em que tudo começa a parar. É o travão que é posto ali. Vai parando, parando, parando, mas ainda tem algo para dar. De repente, à equação das guitarras, baixo e bateria é adicionado um órgão.
Tudo isto vem de quatro raparigas de Brighton e um produtor de óculos que dá pelo nome de Steve Albini. Axes é um disco belÃssimo, hipnótico, que não é um disco ao vivo, ao contrário do que se diz por aÃ. Foi gravado ao vivo no estúdio de Albini durante alguns dias, no Natal de 2004. Como é que isso faz dele um disco ao vivo, não sabemos. O que sabemos é que faz dele um disco que não soa nada forçado mas sim natural e, por isso, genuÃno. Há letras, mas quase todas as palavras são imperceptÃveis.
Contudo, isso não interessa nada. O que interessa é a beleza que vem de sÃtios improváveis. Quase todos os temas começam lentos, com coisa pouca. Umas notas de guitarra, uns acordes, umas notas de baixo, a bateria, tudo começa a evoluir. A arrancar. Há uma antecipação e um clÃmax, uma gradação ascendente até um fim imprevisÃvel.
Axes começa com feedback de guitarra que dá origem a uma desbunda barulhenta e depois pára de repente, após poucos minutos. Entra o piano com notas graves e ainda algum feedback de guitarra. É 1 minuto e 44 segundos disto, que vai descambar outra vez no piano, que interpreta um sonho que deixa de ser "One Two Three Lots" e passa a ser "Bells", logo com bateria e uma guitarra limpa, entrando um riff de baixo de vez em quando. Repete-se e evolui com voz e uma desbunda lá para o meio. Leva-nos a "Two for Joy", já referida aqui. As batidas são quase todas básicas, 4/4, mas surpreendentemente eficientes e suficientes.
"Eight Steps" é uma tarde passada num café no meio de Paris, com franceses estereotipados a tocar acordeão e balões. Olham com suspeição para um ladrão daqueles com uma fita nos olhos, acariciando o bigode. De repente, o ladrão rouba qualquer coisa e tudo muda. Tudo pára. Fica mais lento. O piano continua, mas o resto não. Corre tudo atrás do homem, estão quase a apanhá-lo. Correm mais e mais. Entram os sopros, estão quase a apanhá-lo. Apanharam-no. Agora estão a espancá-lo à força toda. O ladrão morreu, viva o ladrão.
E o resto do disco continua na mesma onda, temos o riff sombrio e o saxofone free-jazz de "Gone Darker", temos "These Pockets Are People" que dá lugar a uma versão punk de "The Partisan" de Leonard Cohen, temos o banjo belÃssimo de "I Keep Losing Heart", e temos a suite final, "Suitcase". São quase 10 minutos de puro deleite, totalmente indescrÃtiveis.
As referências aqui não são só os Stereolab que tanto pontuavam os outros discos das Electrelane, temos mais krautrock, mais post-rock, uns riffs do hard-rock, jazz, uns pianos eruditos, alguma pop, temos muito. Mas temos, basicamente, Electrelane.
Uma epifania, um sonho, uma vida está em Axes para quem quiser apanhar. Ou quem não quiser, ou quem quer que seja. Até pode ser a menina do metro, pode até ser que aquele olhar nos tenha sido dirigido. Não, não deve ter sido (mas é bom sonhar).