Quem, como eu, não perde um episódio de Sete Palmos de Terra, sabe o quanto trata a série de premonição, ciclos de renovação e ressurreição (nem sempre verificados no sentido divino). A certa altura do episódio 17, Driving Mr. Mossbank, o diálogo entre os prodigiosos irmãos Fisher passa pelas Sleater Kinney. Claire mostra-se surpreendida com o facto de também Nate adorar a música do “power-trio†feminino. As Sleater Kinney são um segredo que não conhece idade apropriada para ser verdadeiramente apreciado. O seu público cresce em conformidade com a banda. Seria necessário esperar três anos para dar conta de quão apuradamente premonitório fora esse episódio. Nate rumava Seattle, onde viria a desprevenidamente conceber Maya – o angélico rebento que na série simboliza continuidade. As Sleater Kinney mudaram-se para a Sub Pop (uma das mais emblemáticas editoras de Seattle) e The Woods, apesar de inflectido sobre um existencialismo sublinhado a negro, é quase pascoal pelo indomável fôlego que traz à carreira do trio.
Quando, há uns tempos, uma operadora de telecomunicações ofereceu umas borlas a todos os seus clientes, alguém me alertava para a inacessibilidade das Sleater Kinney, dado o seu estatuto quase lendário no campeonato indie. Não é para menos: sete respeitáveis discos em dez anos (sendo que o primeiro servira como tubo de ensaio e, quando comparado com os restantes, soe a irremediavelmente inferior) confere-lhes o direito de subirem ao pedestal que pertence apenas às entidades consagradas. E lá se encontram, mais firmes e convictas do que nunca.
Entre as árvores de The Woods não ressoa o eco das palavras “riot grrrlâ€. Perdoem-me as L7 e as Bikini Kill, mas desde o determinante Call the Doctor que o trio de Portland evidencia uma muito mais sonante sofisticação do que as suas antecedentes, uma flanquedora sensibilidade que as demarca do termo recorrente (redutor e risÃvel quando associado ao álbum em cheque). O simbolismo - inerente ao facto de esta representar a sétima adição à discografia - garantiu à s Sleater Kinney a oportunidade ideal para projectar no limiar das suas ambições um objecto cabalÃstico e épico, que assegure a continuidade da via pavimentada até aqui sem renegar aos conhecimentos adquiridos a paragens percorridas. The Woods triunfa categoricamente pela forma como redimensiona a matriz punk das Sleater Kinney à grandiosidade da ópera rock (como se Tommy dos The Who muda-se de sexo), exaltando qualidades que até aqui surgiam microscópicamente dispersas por discos tão recomendáveis como Dig Me Out ou The Hot Rock.
Não se julgue no entanto que as Sleater Kinney visam, com isto (e com a produção contratada a Dave Fridmann), copiar o modelo actualmente explorado por toda a turma prog/pós-rock. Uma idiossincrática barreira impede o trio de proceder a transfusões de sangue. Para mais, não há grupo sanguÃneo que conheça compatibilidade com a inconfundÃvel estridência vocálica de Corin Tucker (a Maria Callas do rock independente), ela que se transcende a si mesmo em arrepiantes picos de inospitalidade como “The Foxâ€. Corin Tucker corresponde à sereia que, em vez de atrair os marinheiros, frisa com a sua voz a inacessibilidade dos recônditos mistérios femininos. The Woods comprova as Sleater Kinney como auto-suficientes decoradoras de um espaço que preenchem com guitarras (o baixo não entra aqui) que aprenderam a manobrar com uma consistência amazónica capaz de provocar embaraços em alguns colegas de profissão. Como se tudo isto não bastasse para tornar The Woods numa experiência inesquecÃvel, desponta das profundezas uma colossal faixa que parece condensar em 11 intensos minutos todo o psicadelismo que possa ser extraÃdo ao sentimento amoroso como vivido por mulheres, a braços com o dilema da devoção incondicional. “Let’s Call it Love†coloca as Sleater Kinney ao nÃvel dos melhores momentos que conhecemos aos Cure (Pornography foi recentemente lançado em versão dupla). The Woods é o atalho entre a floresta encantada de Mary Timony e a gruta de Kristin Hersh.
The Woods é também comparável ao Pinhal de Leiria. Protege a fertilidade criativa dos ventos maldizentes e serve a sua madeira para aquecer as almas de quem nele se perde com o intuito de se encontrar. Encontrar aquele que, até ver, é o mais imponente candidato a melhor disco do ano.