A cada necessidade o seu ritual. No México festeja-se o dia dos mortos. Dia de los Muertos. As ruas de Oaxaca e Puerto Escondido enchem-se de rostos cadavéricos, numa altura em que a tequilla e mezcal facilitam a comunicação com entes desaparecidos. O culto do mórbido na mais pura e assumida das suas formas. Um pouco como acontece no horário nobre do VH-1 - o canal tematicamente vocacionado para quarentões que, na sua variante generalista destinada à audiência europeia, faz o que pode para olear o processo de reciclagem que transforma as hordas de condenados ao esquecimento em luzentes novos empacotados. O emblemático Behind the Music não é mais que um serviço noticiário editorialmente fixado na sinistralidade. O Bodyspace aproveita o molde do canal e arrisca o saudosismo mórbido em...
“A Ascensão e Queda dos Turbonegro”
O mito é o do jovem embriagado que acorda na companhia de alguém que desconhece e que pouco se assemelha à imagem alcoolicamente idealizada da noite anterior. O estatuto precocemente lendário de que os Turbonegro usufruem bateu-lhes à porta um pouco por acaso e muito por responsabilidade do seu atractivo exótico e incansável calendário de concertos. A banda já conheceu o sabor da consagração na ocorrência de um dia temático sito em Hamburgo e num álbum de tributo - Alpha Motherfuckers - para o qual contribuíram, entre outros, os Queens of the Stone Age e os eternamente subestimados Supersuckers. Ainda que não se possam gabar da mesma longevidade, os Turbonegro são a versão escandinava dos nossos Xutos & Pontapés. Num discurso fundamento por riffs ambiciosos e refrões talhados para a conquista imediata de estádios, os autores de Scandinavian Leather prometem farra, prazeres carnais, “cauboiada” do anoitecer até à aurora do dia e cerveja para pequeno-almoço. Evite a ressaca, mantenha-se em sintonia com os Turbonegro.
Quando o facto de serem revivalistas assumidos desse género maldito que foi o cock rock (Mötley Crüe, Twisted Sister e outros que tais) os sujeitaria ao apedrejamento por parte de autoridades respeitáveis como Jello Biafra (ele que nomeia Apocalyspe Dudes como o melhor álbum europeu de todos os tempos), eis que surge neste encadeamento o twist à Shyamalan: os Turbonegro são magnífica e perigosamente subversivos na forma como sobrepõem a assumpção gay ao heroísmo machista que, nos anos 80, fazia dos bastidores de concertos haréns onde o mais difícil era distinguir quem era quem entre a densidade capilar. Sob o risco de também eles se tornarem vítimas da sua própria armadilha (o novo lançamento empurra-os para lá), os Turbonegro parodiam a postura dominante do hard-rock ao celebrarem a sodomia sem rejeitarem a hipótese da passividade. Goste-se ou não do teor politicamente incorrecto de discos como o ponto alto Ass Cobra, a verdade é que o fazem com uma inteligência e garra que os eleva à condição de dignos executantes de rock e os livra de um julgamento apontado ao ridículo (também os Bloohound Gang eram genialmente idiotas).
É muito provável que Jello Biafra esteja enganado quando refere a Apocalyspe Dudes como o mais grandioso dos discos europeus, mas não estará muito longe da verdade se a essa afirmação adicionarmos a palavra “rock”. Sim, Apocalypse Dudes é uma obra-prima do rock tal como suado à direita do Atlântico. Cumpre aquele que deve um dos objectivos primários de um disco rock: fazer com que mesmo os deslocados se sintam imortais ao escutá-lo. O pré-milenar manifesto escandinavo irradia abundantemente aquele tipo de energia tão propícia ao engrandecimento da confiança como tónico da sexualidade (seja ela qual for). Muito por causa de uma intensidade electrizante, hinos pouco ortodoxos como “Get it on” ou “Rock against ass” tornam possível um cenário altamente improvável: converte a um cego deboche todos os convictos que se atreverem a entoar os seus refrões gay. E isso é magia implacável.
Face a isto, Party Animals é desolador. Na tentativa desesperada de reproduzir a tal magia, os seus autores tropeçam em todos os clichés e percalços possíveis. O tema deixa de ser o orgulho de quem não conhece outro tecido que não o cabedal e passa a servir os propósitos de uma banda obcecada pela necessidade de afirmar a sua duradoura militância na resistência a noitadas e firmeza da erecção (obrigação recorrente na carreira dos Turbonegro). O anedotista passa a ser a anedota.
E por lá andam as (des)graças habituais: o humor negro de mão assente na ignição da adrenalina, no primeiro single “All my Friends are Dead”; o refrão memoriável à segunda escuta que implora por punhos erguidos numa “City of Satan” pilhada aos Kiss; o pastiche embaraçoso de “Death From Above” (decalque quase assumido de “Goofy’s Concern”, peça fulcral de Independent Worm Saloon dos Butthole Surfers). Ficamos sem saber se as reminiscências resultam de falta de ideias ou se se destinam a servir de isco. Party Animals nem sequer desilude quem até ele acorre para ver satisfeita a sua necessidade diária de Deathpunk (género criado pelos próprios) – até porque ganha com cada escuta -, mas revela-se impotente em superar a marca da linha de água que divide os melhores dos piores discos assinados pelos Turbonegro.
Party Animals promete mais do que alguma vez cumpre, muito por causa da sobreexposição da fórmula cada vez menos secreta de uns Turbonegro imersos em pleno transe onanista. É de lamentar que, em vez de se deixarem contagiar pelo narcisismo, recorram referencialmente a bustos poeirentos para alcançar um clímax meteórico. A turma de Oslo consegue com este disco atingir aquela que é tida pelo lado negro do rock como a derradeira fantasia: uma orgia orientada pela necrofilia.