Arrependei-vos, infiĂ©is! O novo maná do desconstrucionismo dos cânones da pop mora em The Books e, mais especificamente, no surpreendente Lost and Safe. A neurose começa logo no primeiro verso do inaugural “A Little Longing Goes Away”, onde profetizam “yes and no are just distinguished by distinction”. É mĂşsica de enrolar a lĂngua, baseada em instrumentália acĂşstica e aquilo que a comunidade anglo-saxĂłnica chama de found sound, uma sub-divisĂŁo da arte que faz do reaproveitamento de restos o seu nĂşcleo central de trabalho, para onde podem convergir desde gravações caseiras a captações de rua, mercados, feiras de paragens longĂnquas. E nisso ninguĂ©m bate as etiquetas Luaka Bop e Sublime Frequencies.
Talvez por possuĂrem essa veia ecolĂłgica nĂŁo seja de estranhar ouvir em “Vogt Dig For Kloppervok” uma porta a abrir-se ou a fechar-se (para o caso nĂŁo interessa) ou o choro de uma criança e uma gaivota a piar em “Smells Like Content”. Ou que “An Animated Description of Mr. Maps.” comece por soar a orquestra mariachi, a tactear ao de leve o universo de western de um John Ford da primeira casta, e depois evolua para uma matriz call-and-response que lembra uns Notwist em despique verbal com samples de pessoas mortas. E se há coisa que os The Books exploram com argĂşcia sĂŁo as letras. SenĂŁo, Ă© ouvir no final desta: “I want all of the American people to understand that is understandable that the American people cannot possibly understand. É malhar no Presidente, claro está!
E o que dizer de “Venice”, uma das ideias mais arrojadas transformada em canção? A pintura assistida de um quadro, uma verborreia de artista a intervalar as pinceladas com explicações sobre o mĂ©todo, enfim o discurso do mĂ©todo. É como Vincent van Gogh dar-nos pistas sobre como mutilou a orelha, sĂł que um bocado mais simpático. Assim sĂŁo os The Books, geniais, inconsequentes, a construir pirâmides de som sem conhecimentos de álgebra ou matemática ou arquitectura. A tornar as coisas mais difĂceis mas sempre com mĂşsica de encher o olho, mesmo que logo a seguir apliquem um violento soco da jugular Ă retina.
Formaram-se em Nova Iorque corria o ano 2000, quando Nick Zammuto e Paul de Jong foram apresentados por um amigo comum e, desde então, têm aplicado torções constantes na marcha indiferenciada da música de massas. E, por já estarmos dentro da dimensão deles, até já abusamos da aliteração. Ainda poucos perceberam mas a vida é uma sobreposição de camadas, de elevações e mergulhos. Por que não fazer um disco assim e pôr ao barulho ponteiros de relógio a fazer tic-tac, o som de uma coruja, telefones a tocar, lamentos durante a noite, como em “If Not Now, Whenever”?
Pois os The Books já vão no terceiro, depois de Thought for Food em 2002 e de se mudarem para a Carolina do Norte onde lançaram The Lemon of Pink. Valeu-lhes o interesse de Tom Steinle da Tomlab Records, para quem sempre gravaram. Para fazer um dos mais brilhantes discos do primeiro semestre deste ano, a banda mudou-se outra vez, desta feita para um casa victoriana no Massachusetts, e mais uma vez deu a volta ao texto, com canções que são como crepes chineses cobertos (outra vez, a aliteração) de molho agridoce. Devora-se de uma dentada, degusta-se ainda com o molho nos cantos da boca mas leva-se algum tempo a digerir. Casos de “It Never Changes to Stop”, mas sobretudo de “Be Good to Them Always”, um tema que é um brinco de pérola, disposto em camadas que não acabam, com guitarras esparsas e em cascata, a desafiar a paciência, a mostrar pontos de fuga mas a barrar o caminho.
E ainda há quem se preocupe com o futuro da pop e pense que ela vai ficar-se pela cançoneta mariquinhas. SĂł Ă© pena que isto ganhe um tal dramatismo que seja difĂcil apreender o disco todo sem espaçamentos temporais. Mas isso apenas lhe dá mais espaço e tempo para crescer. Uma advertĂŞncia: Ă© complicado ouvir Lost and Safe e nĂŁo pensar em comida. Sai pato Ă Pequim para toda a gente!