bodyspace.net


Four Tet Everything Ecstatic

2005
Domino


Existe aquela noção dúbia de que colaborar com Björk é sinónimo de consagração na área da electrónica. O carisma da islandesa é de tal forma imponente que os artistas convidados para os seus discos sempre se arriscam a encontrar a sua marca – por mais distinta que esta seja – diluída na da autora de Vespertine. Trabalhar com Björk remete para uma postura subserviente (repare-se em como domesticou os Matmos) e jamais para a coabitação. Apesar de igualmente soberbo, Four Tet semeia a sua assinatura de uma forma mais subtil mas igualmente personalizada: uma remistura de conteúdo alheio passa a ser Four Tet nas suas mãos, os jingles pilhados à televisão passam a obedecer à sua flexível rédea, até mesmo as faixas que produz resultam em objectos superficialmente estigmatizados. Insinuando-se, infiltrando-se progressivamente, oferecendo porção da sua imensa alma ou no papel de arquivista, Four Tet não deixará de ser Four Tet, tal como não é obrigado a vergar aquele que com ele cooperar. Mi casa es su casa.

O quarto capítulo Everything Ecstatic faz de Four Tet (Kieran Hebden para os amigos) o xamã de uma celebração espiritual que há-de conduzir a um plano superior a que, por enquanto, só é possível adivinhar a forma. Conforme o próprio confidenciou ao Bodyspace, o novo trabalho almeja a um estado transcendental de euforia, êxtase, nirvana. Quis o assalariado da Domino Records, através da intensificação do apelo sensorial, atrair até ao seu círculo de influência aqueles a quem agrada mais o risco assumido pelo músico nos improvisos programados ao vivo. Depois, Everything Ecstatic mesmeriza quem apreendeu através da sua imparável dinâmica e todos eleva a um plano superior. A entidade Four Tet equivale ao Deus Ex-Machina que aguarda pelos cruciais instantes estáticos na Torre de Babel para colocar um santuário de ritmo em cada divisão e, assim, converter a confusão em boas vibrações.

As afinidades que unem o autor de Rounds a Björk não se ficam pelas atrás mencionadas. O Debut da princesa escandinava era resultado directo da “movida” londrina, do sono perdido entre mais uma e outra discoteca. Comparativamente, Everything Ecstatic remete para a inquietude de quem não dorme enquanto o jazz e o improviso (por cá andam condensados) não volvem à caixa de Pandora, revela-se adequado ao cosmopolitismo de quem percorre milhentas experiências enquanto outro meio mundo dorme à beira de estações de combustíveis na esperança de um bilhete.

Percorrem-se paisagens emocionais num cruzeiro de sensações ao rubro. “A Joy” faz do groove uma experiência extrema. As harpas e outros acústicos - identificáveis a um passado recente – cedem espaço ao ruído fustigado. Caiem por terra quaisquer hipóteses de continuidade assim que a “Smile Around the Face” entra em cena. Escutam-se ambas as faixas e inspeccionam-se os seus títulos, e conclui-se que Everything Ecstatic surge inserido na discografia de Four Tet como consumação explosiva da luminosidade retida em Pause e depurada em Rounds. Quando os expectantes lhe antecipavam um terceiro capítulo que concluísse a trilogia folk, Four Tet lança-os num tapete voador que conduz ao jazz citadino e electrónica frenética como quem sobrevoa a utopia.

A lógica inverte-se e passa a ser a tempestade – de samples bronzeados e estridências encruzilhadas - a suceder à bonança. Four Tet meditou sobre a folk até atingir a clarividência. O seu quarto disco proporciona a panorâmica espiritual de alguém que interrompeu por tempo indeterminado o seu percurso e aproveitou para apreciar o que esse estrado mental lhe oferece. Neste caso, o direito a que o seu nome passe a partir de agora a ser tomado como um adjectivo e não como mais um aspirante ao apadrinhamento dessa entidade papal que conhecemos por Björk.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
15/05/2005