Alturas há em que uma visĂŁo do final das coisas permite, por momentos, uma reflexĂŁo cuidada sobre o fim de uma realidade, uma alucinação breve de como tudo poderia ter sido, Ă©, e poderá ser. O drama, afinal de contas, coloca sempre tudo em perspectiva. E Ă© aĂ que as metamorfoses surgem, dotadas de todo um novo significado. Depois de uma espĂ©cie de crise na carreira, os Migala voltaram a fazer par com o trabalho impecável da Acuarela, acolheram Nacho R. Piedra (o responsável pelo DVD que acompanha a edição do disco) e deram vida a La IncreĂble Aventura, um conjunto de filmes musicais (como o prĂłprio DVD indicia) que estabelece cada vez mais o corte com as direcções tomadas no passado, em discos como Arde e Restos de un Incendio, um conjunto de canções gravadas originalmente entre 1997 e 2000 de forma a respeitar o clima de mudança que já na altura se tentava instituir. E esse corte representa, nada mais, nada menos, que o afastamento cada vez mais Ăłbvio do uso da voz e a aproximação a estruturas reconhecidas do pĂłs-rock. Tudo isto, para que se pudesse explorar o lado mais orgânico e quase primitivo da mĂşsica, respeitando sempre o cunho prĂłprio da mĂşsica dos Migala, um dos maiores (e melhores) exportadores musicais da Espanha.
E tudo começa de forma mais ou menos estranha com a faixa de abertura, “El Imperio del Mal”. Primeiro irrompe um sample de cânticos e percussĂŁo daquilo que parece ser uma tribo nativa americana, depois desenvolve-se uma passagem rock com guitarras surf, crescendos paralelos e percussĂŁo em escalada. E quando se pensa que as coisas nĂŁo poderiam ser mais estranhas surge um sample de “Star Wars” onde se escuta: “I've been waiting for you, Obi-Wan. We meet again at last"”. “Dear Fear:” começa serena com ruĂdos provenientes de rádios, teclas e percussĂŁo esparsa, mas cedo se constrĂłi e se fortifica em intensos crescendos e sucessivos clĂmaxes levados a cabo essencialmente por um indestrutĂvel “muro” de instrumentos de cordas. Por tudo isto, “Dear Fear:” recupera a cadĂŞncia dramática dos Godspeed You! Black Emperor ao mesmo tempo que se assemelha uma inabalável força da natureza. O sampling volta a surgir em “”El tigre que hay en ti”, um tema que manda o pĂłs-rock para cima dos Calexico, enquanto se debate com uma postura mais rock do que nunca. Mas desta vez os Migala insistiram em nĂŁo ficar muito tempo no mesmo trajecto e fazem questĂŁo de o mostrar de faixa para faixa. “WWW (Searching for the Wicked Witch of the West”, volta a baralhar tudo e encontra os Migala a tentarem fundir a estranheza (o inĂcio) com o quase pastoral (o meio), e descargas de guitarras rock (o fim). E depois voltam a misturar tudo outra vez. Depois de uma espĂ©cie de interlĂşdio apaziguador, surge “Your Star, Strangled”, uma das duas faixas onde Abel Hernandez empresta a sua voz. Aqui, a historia Ă© outra, de novo. A da folk, desencadeada pelo som gentil de uma guitarra acĂşstica, harmĂłnica e a envolvente teia de cordas que marca presença no final. As palavras de Abel Hernandez sĂŁo essenciais na criação do cenário comovente: “And the snow still falls, and the stars the have no light, or name". No final da canção já Ă© tudo demasiado barulhento e elĂ©ctrico para que se possa chamar folk seja ao que for.
O chilrear dos pássaros com que termina “Your Star, Strangled” dá lugar ao som do mar na faixa seguinte, “El gran miĂ©rcoles”, um tema que se prolonga atĂ© perto dos sete minutos e que encerra quase todas os caminhos percorridos neste “La IncreĂble Aventura”. O som do oceano continua atĂ© se juntarem guitarras e cordas numa introdução que se desenvolve atĂ© receber de novo a voz de Abel Hernandez: “It appears to me I've seen / Three honeys with tiger t-shirts on". E depois, precedida por um grito, a explosĂŁo a la Godspeed, com guitarras esfuziantes, cordas, percussĂŁo e as tonalidades etĂ©reas que o pĂłs-rock tĂŁo arduamente anseia. “Tucson, Game Over” volta a levar os Calexico a um concerto dos Godspeed e “Lecciones de vuelo com Mathias Rust”, o tema que fecha o disco, Ă© um exercĂcio de mais de dez minutos que, pela quantidade de secções facilmente distinguĂveis, se assemelha quase a “With tired eyes, tired minds, tired souls, we slept”, o Ăşltimo tema do explosivo Those Who Tell the Truth Shall Die, Those Who Tell the Truth Shall Live Forever dos Explosions In The Sky e, verdade seja dita, Ă maioria dos temas dos Godspeed. Secção apĂłs secção, camada apĂłs camada, crescendo apĂłs crescendo, os Migala terminam com um daqueles riffs que valem por todo um disco. Acompanhado por cordas, Ă© claro. E no pĂłs-rock nĂŁo há melhor forma de acabar um disco como aquela que fecha a cortina de “La increĂble aventura”. Aqui, os Migala vestiram o pĂłs rock com outras roupas, fundiram-no com outras ambiĂŞncias e o resultado Ă© deslumbrante.