bodyspace.net


Dälek Absence

2005
Ipecac


Perdi-me na bruma dos Dälek por altura do 22º Fantasporto. Nada me preparara para o hip-hop sorumbático do EP Negro Necro Nekros, tal como não esperava que o certame de cinema me contagiasse ao ponto de recorrer a cada sessão no Rivoli como se fosse uma refeição, a ser aglutinada após longo jejum. Depressa se complementaram as duas novas experiências propícias entre si. Durante três dias apenas, vivi na pele do “junkie†de obscuridade que se sujeitava a experiências alucinantes com o rabo assente num cadeirão do Grande Auditório do Rivoli e ao embalar sinistro dos Dälek durante os trajectos casa-cinema/cinema-casa. Guardo desses dias o que a memória permite: hora e meia de hilariante prazer perante a desgraça alheia - Vincent Gallo, Inês de Medeiros e Joaquim de Almeida protagonizam o menos convicente trio de astronautas em Stranded – Náufragos - e os primeiros sintomas de dependência provocados por uma substância tóxica que conhece em Absence a terceira grande remessa.

Há qualquer coisa de fatídico na afronta sonora protagonizada pelos Dälek. À primeira passagem do “jumbo-loop†de “Distorted Proses†(a primeira faixa do disco), já os dinossauros parecem preparados para ocupar o lugar dominante no ecossistema. Estou certo de que Charlton Heston não suportaria a música do trio se a escutasse. Sem ceder a dogmas, Absence tece de raíz um discurso crítico que reconhece o falhanço humano em encontrar a melhor forma de alinhar as peças do dominó, sem que o equilíbrio de algumas dependa da queda das outras. A ausência a que o título se refere está obviamente relacionada com duas dessas peças que, ao tombarem, mudaram a paisagem urbana tal como é observada a partir de New Jersey (proveniência dos Dälek). A condição de observadores exteriores legitimiza e qualifica qualquer via alternativa sugerida por Still, Dälek e Oktopus (a tríade que compõe o colectivo). Absence comporta tanto de ético como de herético, dever de igual forma a Karl Marx e a São Cipriano. A única ditadura é a da verdade.

Apesar de passível de ser associada aos mencionados no parágrafo anterior, a natureza dos Dälek é orgulhosamente bastarda. Porém, há quem arrisque mencionar o nome dos Public Enemy como entidade paternal. Se assim for, a ameaça que veio de New Jersey herdou do pai a firmeza do punho erguido que estrilhaça as fundações do sistema na condição de “outsider†respeitado a que o vicioso núcleo cede apenas o espaço necessário – mas suficiente – para alcançar os efeitos desejados. Por sua vez, o pesar sinistro que envolve o pulsar lírico dos Dälek conhece uma irmandade muito mais lúdica nos discos do super-grupo hip-hop Gravediggaz e nos Cypress Hill do subestimado III: Temples of Boom (as semelhanças estéticas são demasiado evidentes). Os autores de Absence correspondem ao caso típico do filho rebelde que abandonou cedo o lar. Embalou na trouxa a amplitude psicadélica-shoegazer dos My Bloody Valentine (primos por afinidade) e fez-se à Mulholland Drive.

Em que estado o encontra então o terceiro disco? Maduro, munido de dispositivos adquiridos durante o percurso (os cavernosos “grooves†de Absence exibem progresso), emocionalmente irritadiço, perfeitamente ciente do passo anterior e convicto da direcção a dar ao próximo. No ponto ideal da tonalidade cinza. Estão reunidas todas as condições favoráveis à emboscada verbal: a área de manobra encontra-se estrategicamente delineada e vigiada pelo ímpeto dos MCs predadores (em pico de forma), prontos a disparar dardos pelo microfone e esperar que o DJ recolha as presas nas malhas dos “loops†subliminarmente cinzelados e distorcidos. Em vez de enbalsamá-las, DJ Still preserva as cabeças das vítimas em âmbar de carvão – a cada vez que a maquinal repetição vai além dos cinco minutos suportados pelo pensamento antes de ceder ao fascínio primordial. O método resulta em caça abundante e os que preferem os índios aos cowboys dão por si satisfeitos após escutado Absence.

Além de proporcionar leituras que pouco ou nada terão a ver com a minha, Absence reafirma peremptoriamente os Dälek como “aqueles-de-que-não-falamos†da automatizada vila hip-hop. É provável que os mais distraídos com disputas territoriais e preciosidade dos cachuchos que trazem nos dedos dêem por si empalados no alto do monte mediático. A acontecer, a vitória subterrânea não será por acidente. Absence já é um dos grandes discos de 2005.


(Nota: fala-se por aí de que é bem provável a vinda dos Dälek a Portugal. Aos promotores que possam estar a ler, esta é uma oportunidade única de testemunhar in loco o melhor período de um dos projectos mais interessantes do hip-hop actual.)


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
08/03/2005