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Superchunk Come pick me up

1999
Merge


O conspirador que há em mim arrisca-se a revelar uma verdade - debatível e suspeitável - relativa ao indie-rock: os Superchunk só não ocupam o pedestal que aos Pavement pertence, porque estes últimos encetaram a sua carreira com duas obras (Slanted & Enchanted e Crooked rain, Crooked Rain, para os pecadores que se atrevem a não possuí-los) capazes de definir, por si só, um período. A banda de Stephen Malkmus projectara a fasquia para uma dimensão astral a que adversários directos (e os próprios autores da proeza) dificilmente poderiam aspirar. Quis o destino que mirabolante volte-face ajustasse contas entre os dois colectivos: a carreira dos Superchunk renasce com Come Pick Me Up, numa altura em que os Pavement se desintegravam num crepúsculo aterrador.

A prova de resistência tinha sido arrebatada pela banda de Chapel Hill e para isso muito contribuíra Come Pick Me Up. Neste filme, coube aos Superchunk o papel de Hobbit determinado a percorrer a década de 90 sem jamais ceder à tentação da electricidade-fuzz ou aos cifrões acenados pelos papões do negócio. O facto de lançarem os seus discos pela Merge - pertença dos próprios - assegurava aos Superchunk a posse das rédeas e a oportunidade de as manobrarem como bem quisessem. A banda dependeria apenas do seu apurado sentido "pop" e inesgotável volume criativo para nadar despreocupadamente entre tubarões.
Imprevisivelmente e muito despercebidamente, Come Pick Me Up mergulha sorridente de um penhasco como uma ópera fabular disfarçada de disco convencional. A artimanha reclama por uma segunda leitura e, após assimilada, nem se digna a respostas. Bate asas dali para fora e deixa apenas reticências.

O pré-milenar Come Pick Me Up resplandesce na sua condição de fábula do falcão e da minhoca: a que narra o dia em que o verme se atraveu a solicitar a boleia do pássaro, que a conduziu - suspensa no bico - por paragens tão admiráveis quanto capazes de roubar a vida ao frágil passageiro. A alegoria animal aplica-se à condição de todos a quem a palavra "medo" pareça familiar. O alerta lançado é o da urgência de descobrir todos os prazeres antes que se descubram rugas no rosto. Come Pick Me Up é um Viagra de jovialidade capaz de facultar um último canto ao mais desesperado dos cisnes. A base deste portento de melodia assenta na polivalente imaginação de que os Superchunk usufruem para orquestrar a sua ópera de bolso. Acabam por ser o desprentensiosismo e leveza do conceito a ampliar a pequenez (apenas aparente) deste microcosmos, ao ponto de ser possível observar os músculos às pulgas do circo amestrado.

O pouco espaço que os bichos ocupam faz com que este sobre para a música, que aqui desfila como que por um tapete coberto de pétalas. Há tempo para guitarras à medida de quem sonha acordado, instrumentos de sopro certeiros, "Hello Hawk" (single tão fresco como a mais memorável das Primaveras), "cameos" de Jim O' Rourke (actual membro dos Sonic Youth e co-produtor do disco na berlinda). Tudo isto tecido com aprumo e perfeita noção das quantidades. Pois a tapeçaria de Arraiolos é para quem sabe e não para quem quer, e Mac McCaughan (perdoem-me os restantes membros, mas é ele o cérebro de tudo isto) quer, sabe e demonstra-o sem até ele atrair atenções.

Impossível será não simpatizar com o charme dos Superchunk. Nunca é tarde para ceder a uma proposta e, ainda que tardio na carreira da banda, Come Pick Me Up cumpre na perfeição como convite a investigação aprofundada. Pardais ao ninho.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
16/02/2005