Chega a ser embaraçosa a obrigação de viajar no tempo sempre que a opção de fim de noite envolve uma discoteca de provÃncia. O prolongamento do meu "reveillon" arrastou-me até uma dimensão em que tudo se assemelhava à minha percepção de um universo VH-1 à portuguesa: onde o saturante "Sweat (A La La La La Long)" dos Inner Circle ainda é hino e "Should I stay or should I go" a única música que os Clash lançaram. "Rock the Casbah" ou o menos óbvio "Spanish Bombs" seriam fiáveis alternativas a extrair ao infindável espólio Clash, mas, por obra de sabe-se lá quem, recai sempre sobre o dilema cantado por Strummer a escolha do DJ. Por este andar, ainda havemos de festejar um Portugal economicamente estável ao som de "Seven nation army" dos White Stripes ou "In da Club" do multi-baleado 50 Cent. Até que abençoada alma lhe acenda o rastilho, Pressure jaz esquecido por parte de uma maioria que ainda não reconheceu nele a capacidade de ser arrebatador e universalmente atractivo nas pistas de dança. Faço aqui os possÃveis para salvaguardar a sua memória.
A artimanha é obra do prolÃfico Kevin Martin, que vai acumulando facetas diversas em projectos como Techno Animal, Ice, GOD, Experimental Audio Research ou, recentemente, The Curse of the Golden Vampire. O homem não conhece paramento. Antes de mais, reconheça-se-lhe capacidade de evitar a repetição e quase sempre alcançar resultados impressionantes (muito à semelhança do patrão Mike Patton). Além disso, o mago confirma em Pressure que é o Mourinho da música: depois de ter convocado um luxuoso colectivo de MCs para The brotherhood of the bomb (enquanto Techno Animal), conta aqui com os serviços da elite do dancehall e ragga no que a vocalizações diz respeito. A reputação de que goza faz de Kevin Martin o Bud Spencer da electrónica actual - xerife de óculos espelhados que distribui beats como quem vai aviando chapada.
Até ver, a produtividade de Martin, enquanto The Bug, não se gere pela continuidade: Pressure pouco ou nada terá a ver com a cinemática orquestração de batidas e camadas ambientais que mediavam Tapping the conversation - baseado no filme A conversa, de Francis Ford Coppola. A temperatura que subia à medida que o jogo de espionagem de Tapping se tornava mais intrigante, conhece agora marcas absurdas, mesmo que avaliadas à escola caraÃba.
Pressure é incendiário no seu deliberado contágio de pujança dancehall e relaxante aquando das suas incursões pelo lounge. Ainda que as suas passagens mais descontraÃdas o tornem comparável ao mui influente Blue Lines dos Massive Attack, não se julgue que a aproximação é "retro". A sua abordagem será, em vez disso, a do canhão criativo que faz do passado carne picada pronta a servir em menus de novas direcções musicais: a lógica Moulinex 1-2-3 faz todo o sentido no universo de The Bug, se atendermos ao facto de que vêm aqui desovar as diversas ramificações do reggae, operadas pelos truculentos tentáculos de uma electrónica mais hardcore. Haja pulmão que aguente o dub decotado e os beats narcóticos deste "cosa nostra".
Nesta panela de pressão cabe sempre mais um ingrediente: seja o latejar revolucionário de "Politicians", a vertigem que seduz em "Thief of Dreams", ruÃdos em tudo semelhantes aos emitidos pelos alienÃgenas de Marte ataca! ou a colossal faixa "Killer" - a mais preponderante das criações do besouro. "Killer" é de tal forma certeiro que o seu impacto é quase medicinal. Merece toda a exposição que lhe serviu de trampolim (conhece lugar nas compilações Back to Mine - da autoria de Andy Barlow (dos extintos Lamb) - e Rough Trade Shops: Counter Culture) e
não há vivalma que lhe fique indiferente. Fossem todos os singles como este e o uso de iPods seria ilegal.
Aquele que foi para mim um dos grandes discos de 2003, oferecia uma lição de diversidade e categoria ao espectro reggae da altura - à mercê da rentabilização e à espera de reabilitação. Kevin Martin é, acima de tudo, um genial reanimador de géneros. Aqui está um festim capaz de reunir improváveis consensos entre melómanos obsessivos e aficionados do "tuning", alunos dos PALOP ou clientes do Lux. Este mora no meu Olimpo de discos de dança.