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Sonic Youth A thousand leaves

1998
Geffen


Quando ingressei no Bodyspace deparei-me com um só inconveniente: dois dos meus discos favoritos de Sonic Youth - Goo e Washing Machine - haviam já sido (e muito bem) analisados. Recorrer a Dirty poderia soar a "cliché" e não me sentia particularmente afeiçoado ao material lançado na década de 80. Pelo menos quando comparado com o sentimento face a A Thousand Leaves - marco decisivo na discografia dos SY pela forma como separou as águas do mar de diamantes. O terno devaneio que encerrava Washing Machine era, afinal, a prequela que serviria de ponte entre o imediatismo punk aguçado por oposição a Reagan e a definitiva adopção da estética experimental sem nada a temer. A condição de iluminados e um legado praticamente incomparável no plano do rock alternativo concedia à banda nova-iorquina generosa liberdade criativa e respectivo tratamento promocional por parte da Geffen. A Thousand Leaves é três vezes verde: nas suas mil folhas, na carta que lhe permite tomar as direcções arriscadas e na esperança incutida numa geração de músicos. Parecia haver via verde para o desafio de convenções nos recantos mais selectos do "mainstream". Sem ter de olhar por cima do ombro.

Aproveitando os conhecimentos adquiridos ao longo da "SYR Series" lançada em nome próprio e após terem domesticado a carga sónica em Washing Machine, chegara a altura de submeter à profissão de fé todos os miúdos que Moore e Kim Gordon tinham visto crescer do outro lado da rua a partir do seu apartamento. Os mesmos miúdos que viriam a ser dirigidos por Harmony Korine em Kids - digno do seu vanguardismo, nem que seja pela forma como gerou polémica. Korine que, no videoclip realizado para "Sunday", elabora uma esclarecedora tradução visual do sentimento outonal que A Thousand Leaves expira. A candura estival das bailarinas em contraste com um decadente Macauley Culkin, que outrora nos divertia com as suas armadilhas, mas que aqui só causa desconforto ao lambuzar-se com a sua própria saliva. A mascote felpuda (um hamster?) que morde a mão do dono quando este menos espera. Também os Sonic Youth decidiram afiar os dentes perante aqueles que os tinham num pedestal a que recorriam quando órfãos. Talvez seja por isso que muito boa gente detestou o concerto que a banda deu no Sudoeste de 1998. Houve mesmo quem julgasse que Ranaldo e Moore estavam a varrer o palco com as suas guitarras. Após o Verão gozado entre vendas assinaláveis e a bênção da MTV, era altura de reivindicar o direito ao experimentalismo e maturidade.

Tal como sempre aconteceu, os SY souberam como tingir a sua música de uma sensibilidade "arty" sem que tivessem de sacrificar um pouco que fosse da sua personalidade. A batata quente estava nas mãos dos admiradores que se viram obrigados a optar por educar ou não o ouvido ao primeiro disco verdadeiramente adulto dos SY. Ainda que de assimilação difícil e vagamente austero, A Thousand Leaves é infinitamente recompensador.

Coberto pelo manto de folhas secas, o ardor punk permanece intacto e na sua forma bruta. Custa a crer que Kim Gordon, mãe e senhora, ainda consiga ser tão ameaçadoramente ríspida como em "French Tickler". Aquela que, ao lado de Lydia Lunch, é a genuína "riot grrl" continua a domar o ruído à vontade do seu discurso feminista e anti-sexista. Seja na marcha industrial que serve de introdução ao disco ou no manifesto a três tempos que é "Female Mechanic Now On Duty".

As adições significantes ao já denso espólio dos Sonic Youth são muitas: o representativo hino ao tédio "Sunday" que, a arriscar-se a comparação absurda, é "100%" com o pijama vestido do avesso. "Wild Flower Soul" - muito provavelmente um dos primeiros clássicos contemporâneos do rock dito alternativo a durar mais de nove minutos. O caleidoscópio vai acumulando cores e ângulos com a adição da componente poética versada à tona de águas salubres em "Hits of Sunshine (for Allen Ginsberg)" ou com a habitual incursão pelo imaginário "beat" pela voz de Ranaldo - "Karen Koltrane", neste caso. Mesmo quando contemplado superficialmente, A Thousand Leaves oferece remédio para todas as necessidades, soluções para todos os gostos.

É por isso que o tenho como o primeiro compêndio equilibrado de uma carreira. Álbum de transição, fiável trampolim para a trilogia acerca de Nova Iorque que teria como primeiro capítulo o subestimado NYC Ghosts & Flowers, A Thousand Leaves é essencialmente o primeiro disco do Outono de uma invejável carreira, após os últimos dias de Verão passados em família. Avizinha-se um longo e rigoroso Inverno e aposto que muitos serão os que já esfregam as mãos de ansiedade.


Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
05/11/2004